Entra Maria. E porque são 18 horas, e o dia teve poucos cafés, e a saúde está em greve, o médico se pega pensando "Mais uma Maria." Esta é magra, das peles do braço balançarem pendentes, e apesar do rosto enrugado faz questão de pintar as sobrancelhas e passar um batom vivo. Usa um lenço na cabeça, mas fogem por baixo dele alguns fios de cabelos quebradiços.
"Ah doutor, eu vim porque minhas costas doem muito. Elas já doem há tantos anos""E como é essa dor?" pergunta o médico, e enquanto coleta a história de dona Maria, se pega num turbilhão de pensamentos exaustos - Dor lombar sem sinal de alarme, provável origem muscular com componente psicossomático, fazer agulhamento, passar antiinflamatório, alongamentos e compressa quente para casa; por que será que deixaram entrar uma dor nas costas crônica se na greve só devemos atender quadros graves e agudos?Seguindo a consulta, a paciente se deita para ser agulhada. Mas não se cala."Sabe, eu to morando na casa da minha filha e não consigo nem ajudar na faxina por causa dessa dor. E ela ainda reclama porque eu quero arrumar minhas coisas diferente...""Não pode falar enquanto as agulhas fazem efeito dona Maria."A paciente acata o pedido, mas por um tempo bem curto. Logo volta"É que eu queria ter a minha casa e fazer as minhas coisas na rua mas essa dor não deixa. E desde que eu separei não tenho casa. Foram 40 anos doutor. E eu amava ele, mas ele me traiu com a moça que fazia faxina lá em casa"Dona Maria fala enquanto mexe o corpo e os braços na maca, agulhas na lombar. O médico respira fundo. São 18:25; poucos cafés, saúde de greve, e dona Maria precisando falar. O médico sente raiva - mas se controla - e segue para reenquadrar a consulta. "Vamos tirar essas agulhas e a senhora me conta um pouco dessa história?"Maria desce da maca, não fala nada da dor, senta de novo na cadeira."É que doutor, foram quarenta anos casados. Criamos filhas. Ficamos juntos esse tempo todo e de repente dentro de casa ele faz isso comigo? Não podia perdoar ele. Mas sabe que ainda gosto dele doutor? Ele tava mal das vistas, e ia operar semana passada. Acabei rezando pra ele. Só não gosto de cruzar com ele na rua. Ele e ela né. As vezes faço voltas grandes pra não passar na rua que acho que ele tá. Me dá uma mágoa grande.""Mágoa também dói né dona Maria?""Acho que é o que mais dói doutor. Eu gosto dele, foram 40 anos. É muita coisa né? O senhor já gostou de alguém e ficou magoado doutor?"Silêncio. O médico volta alguns anos para uma dor do passado, um amor que não deu certo. São 18:40, é greve, é dor de cabeça por falta de café. Mas a raiva some, e surge uma enorme empatia. A dor da lembrança de um relacionamento que acabou o conecta imediatamente com a paciente. Ele repara pela primeira vez que ela tem olhos castanhos brilhantes, e um sorriso de gente triste. Extende sua mão para a de Maria, e enquanto elas se apertam, ele diz que sim, que entende."Você é tão jovem pra sofrer disso doutor. A minha mágoa é grande, mas eu já estou nos sessenta. Mas acho que todo mundo sofre né?"Silêncio. Troca de olhares. Maria decide por si mesmo levantar para ir embora. Comenta que já tomou muito tempo, e agradece a atenção. Se levanta e sai, com sua magreza enrugada, sorriso triste e dor de mágoa. O médico fica pra trás, tocado, reflexivo. Não importa mais a hora, a greve, o resto. Apenas Maria, tão humana (como o médico, como todo mundo). Maria com suas dores, buscando ser ouvida. Buscando conexão.
Histórias e ensinamentos dos encontros que se dão em um consultório por aí... *os nomes e dados dos pacientes aqui apresentados são fictícios em prol de sua preservação
domingo, 3 de dezembro de 2017
sábado, 14 de outubro de 2017
Melhor não saber
Entra Marisa, 52 anos, já conhecida. Hoje vem cum calça jeans, sapatilha, e uma blusa com rendas discretas nos braços. O jovem médico abre o prontuário e vê que Marisa acompanha na unidade por depressão, pressão alta, artrite reumatóide, fratura mal consolidada no pé e um mioma - que causa muita dor e sangramento - e que vai operar. Ufa. O médico lembra que foram várias consultas para entender e organizar o caso dela. Se lembra da consulta anterior brevemente:
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"E doutor, eu voltei a namorar, mas está muito seco lá embaixo. Ruim mesmo. Esfola. Não tem um creme não?"
"Tem sim Marisa! Tem um creme hormonal com resultados muito bons"
"Mas será que não atrapalha o meu Mioma?"
Tendo uma dúvida, o médico abre a bula da medicação, e também o Uptodate - um tipo de google médico onde revisões científicas e de protocolos são organizadas para se ter acesso mais fácil ao conhecimento mais atualizado. Descobre que pode usar o creme mesmo com mioma, bastando observar se não haverão piora do sangramento pela dose, e Marisa sai satisfeita
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Voltando para hoje, Marisa senta sorridente "Ai doutor mas aquele creme funcionou tão bem! O namoro está de vento e poupa"
"Que ótimo! E o que a traz aqui hoje dona Marisa?"
"A é que o hospital da cirurgia do Mioma insiste que faltaram esses exames para eu operar" entrega uma lista "e eu precisava fazer aqui pela clínica da família"
"Ah, entendo" diz o médico "Podemos fazer eles, sem problemas"
Enquanto cuida da burocracia de preencher e imprimir papéis, a conversa vai fluindo
"Os médicos de lá são também muito bonzinhos, igual o doutor, eu tava contando que meus filhos moram longe, que to viúva e não tem ninguém pra cuidar de mim e eles tavam me falando coisas tão bonitas"
"Ninguém pra cuidar. E o namorado novo?"
Marisa gargalha alto "Ah mas os médicos de lá eu não conto não. Vai que eles dizem que não posso namorar por causa do mioma?! Melhor não saber"
Riem juntos médico e paciente. Quando Marisa sai do consultório, já em mãos os pedidos de exame, o médico abre novamente o Uptodate. Digita, com termos mais médicos, a seguinte pergunta: "Transar com mioma, pode?"
(Descobre que sim)
sexta-feira, 29 de setembro de 2017
Dos pecados
Entra Joana.Senhora magra, de rugas no rosto e saia longa e florida, e um sorriso honesto, sem vergonha de mostrar que já lhe faltam dentes no fundo da boca.
"Eu vim pra pedir esses exames aqui do oftalmologista, pra ele me operar de catarata"
"Algo mais?" Diz o jovem médico, aplicando uma técnica de entrevista que permite fazer o mapa das queixas do paciente
"Tem uns seis meses que esse meu dedo trava e dói doutor"
"Entendo. Alguma outra coisa?"
"Ah, eu tenho uma dor no ombro, mas essa é a dor dos pecados"
O médico engasga "dor dos pecados?"
"É, é quando temos uma dor antiga, que não passa. A gente fala que é dos pecados que a gente carrega. Nós temos tantos né doutor?"
Ao jovem médico só resta rir e acenar em concordância: "Temos mesmo dona Joana, temos mesmo."
"Eu vim pra pedir esses exames aqui do oftalmologista, pra ele me operar de catarata"
"Algo mais?" Diz o jovem médico, aplicando uma técnica de entrevista que permite fazer o mapa das queixas do paciente
"Tem uns seis meses que esse meu dedo trava e dói doutor"
"Entendo. Alguma outra coisa?"
"Ah, eu tenho uma dor no ombro, mas essa é a dor dos pecados"
O médico engasga "dor dos pecados?"
"É, é quando temos uma dor antiga, que não passa. A gente fala que é dos pecados que a gente carrega. Nós temos tantos né doutor?"
Ao jovem médico só resta rir e acenar em concordância: "Temos mesmo dona Joana, temos mesmo."
quarta-feira, 13 de setembro de 2017
O que nunca aprendi
Iara, 48 anos, vem a consulta com os cabelos abaixados com creme e presos rentes para trás. É atendida pela enfermeira da equipe, onde conta que veio pra acompanhar a pressão alta. Conta que veio para o Rio de Janeiro do Pará, deixando familiares para trás em busca de emprego. Trabalha como faxineira para, em suas palavras, "uma patroa muito boa." A enfermeira a acolhe em sua primeira consulta, e conforme as perguntas vão desenrolando, Iara desaba em choro. Um choro contido, de ombros tensos e musculatura do pescoço saltando. Fala que no caminho para a casa da tal patroa boa há uma ponte, e que ela já parou ali algumas vezes pensando em pular. São 19:30, a 30 minutos o expediente acabou, e ainda há outro paciente para a equipe atender. A enfeira chama o jovem médico. Os dois juntos a acolhem, tomam medidas inicias, e se agenda uma consulta médica para uma avaliação mais completa.
No retorno, Iara ainda é uma mulher que senta contida, segurando a bolsa nas mãos e o choro nos olhos, quase não respondendo quando a pedimos para falar.
"Há quanto tempo você tem se sentido triste Iara?""Muitos anos""Aconteceu alguma coisa quando tudo começou?""É só a vida que é muito dura""É o emprego? A família?""A vida""E tem alguma coisa na sua vida agora que te dê prazer? Vontade de fazer?""Não tem nada não" e aperta a bolsa no colo"E antes disso tudo começar, o que tinha? O que você gostava de fazer?"Novo choro. Iara tenta conter as lágrimas com a força do pescoço e das mãos na bolsa, mas elas escorrem. O jovem médico, O supervisor psiquiatra e a acadêmica esperam."Não tem nada! Nunca gostei de nada""Nem quando era criança Iara?" instiga o psiquiatra"É que eu sempre trabalhei. Minha mãe e meu pai me botavam pra trabalhar na roça, limpar a casa, ajudar na cozinha, tomar conta dos irmãos. Eu nunca brinquei.Silêncio"Acho que nunca aprendi a ser criança."------------
A entrevista segue, mas a frase fica presa no ar. Ao final, pra casa, Iara leva três coisas. Um remédio antidepressivo. Um remédio para diminuir o impulso de suicídio. E, talvez a mais importante, uma orientação de aprender a brincar.
domingo, 2 de julho de 2017
"Nada pra agradar a Deus"
Durante uma visita domiciliar, o jovem médico e sua supervisora atravessam os becos em busca de alguns pacientes. Na janela, uma senhora de cabelos crespos e sorriso de mulher sagaz observa a gente passar. A supervisora a reconhece.
"A sua filha faz pré-natal com a gente não faz"
"Ah, a Marina"
"Isso"
"Ela ta sumida! Tem ido direitinho?"
"Ih acho que ela faltou a última consulta"
"Tem que ir! Gestante tem prioridade, temos que acompanhar direitinho. Posso encaixar ela amanhã na agenda?"
"Pode, pode, eu falo com ela"
"Ou melhor pra ela algum outro dia?"
"Ih, aquela lá não faz nada pra agradar a Deus não doutora. Pode ser qualquer dia. Eu levo pela orelha se precisar"
Vai da crença de cada um, mas o jovem médico não pode deixar de pensar, Deus se agrada mesmo é com a graça desses diálogos. Deve rir muito de algum lugar do céu.
"A sua filha faz pré-natal com a gente não faz"
"Ah, a Marina"
"Isso"
"Ela ta sumida! Tem ido direitinho?"
"Ih acho que ela faltou a última consulta"
"Tem que ir! Gestante tem prioridade, temos que acompanhar direitinho. Posso encaixar ela amanhã na agenda?"
"Pode, pode, eu falo com ela"
"Ou melhor pra ela algum outro dia?"
"Ih, aquela lá não faz nada pra agradar a Deus não doutora. Pode ser qualquer dia. Eu levo pela orelha se precisar"
Vai da crença de cada um, mas o jovem médico não pode deixar de pensar, Deus se agrada mesmo é com a graça desses diálogos. Deve rir muito de algum lugar do céu.
sexta-feira, 16 de junho de 2017
Que ela receba amor
Letícia entra com 42 anos, cabelos lisos negros, olhos delineados por maquiagem e um batom vermelho forte. Traz a filha Luiza de 7, loira encaracolada, os joelhos e cotovelos ralados de tanto correr por aí.
- A consulta é para quem primeiro?
- Ai doutor não sei, porque a Luiza está impossível. Ela corre, ela fala o tempo inteiro, ela fica me seguindo pela casa quando tento fazer minhas coisas, está brigando com colegas na escola, não avança no ensino, tá impossível! e aí eu grito com ela mas me sinto culpada, mas eu perco o controle e grito porque ela tá muito agitada
Frente a enxurrada de palavras, o médico tem uma ideia
- Vamos começar por você Letícia? O que está acontecendo com você?
Vem como resposta uma história de meses de mudanças de humor, choro, gritos com a filha, falta de apetite. Nega qualquer evento traumático na vida, a família está viva, o ex-marido já separou-se há anos. A filha, admite, já era mais agitada antes que começasse a perder a paciência. Usa anticoncepcional, e menstruava no intervalo da pílula, mas há seis meses o fluxo não desceu.
- Será que já estou na menopausa? E olha, tem quase um mês que não vou ao banheiro doutor! Tem alguma coisa errada com a barriga
Ainda com o raciocínio fragmentado, o médico decide por examiná-la... E encontra uma massa de quase trinta centímetros no abdome de Letícia. Chama o supervisor pra discutir o caso. Pensam em internação, em fezes ressecadas. Mas o formato da massa parece estranho para constipação, e tão típico de um útero. Coloca-se um sonar sobre a barriga. E tem um coração pequeno batendo a 140 por minuto ali dentro. Letícia se desespera ainda deitada na maca.
- Não! Não pode ser! eu já engravidei antes! Não é assim! Mas eu uso anticoncepcional!
O supervisor retirar a criança da sala e volta para conversarmos. Letícia é só choro.
- Eu vou ter que arrancar esse bebê! Não dá! Não posso ter ele! Não tenho condições, não tenho dinheiro, eu já não consigo nem criar minha filha sozinha, imagina dois! Não, vou tirar ele! Tem certeza que não são fezes?
Uma hora de conversa depois, Letícia sai. Os médicos repetem a exaustão que, dado o tamanho do útero, qualquer tentativa de aborto representa enorme risco de vida para ela mesma. Leva um pedido de ultrassom para que veja com os próprios olhos (não bastou os ouvidos) que há ali um bebê, e não só fezes retidas. Leva também ideias de tentar tira-lo de lá.
----
Uma semana depois Letícia volta com o ultrassom. Não trouxe a filha desta vez. Entra na sala com o mesmo batom vermelho forte, mas a maquiagem dos olhos já vem borrada de algum choro anterior.
- E como foi o exame?
- Tá la dentro mesmo. Igual vocês falaram. A médica disse que tem 7 pra 8 meses. Eu ainda não entendo. Como, se eu tomava pílula?
- Nenhum método é cem por cento, conversamos isso na última consulta né Letícia. Mas como você está agora?
- Eu continuo desesperada! Não posso ter esse filho doutor! Você não entende, eu sinto que vou fazer uma loucura. Um dia peguei uma facada e estava com ela na barriga, pronta pra tentar arrancar ele de lá eu mesma.
Silêncio no consultório, os ombros do jovem médico tensos, a respiração quase que suspensa no ar.
- E o que te fez parar Letícia?
- E o que te fez parar Letícia?
Em resposta, a mulher de 42 anos chora. Soluça forte, alto, e deixa escorrer pelo rosto muitas lágrimas. Quando se acalma, responde:
- Esse bebê não é culpado da pílula não funcionar, nem de eu não quere-lo! Ele não merece isso. Eu quero que ele seja feliz! De verdade! Mas eu não posso! Quero que ele tenha uma mãe que o ame! Mas não pode ser eu. Não to conseguindo nem ser boa mãe para Luiza, imagina pra ele. Merece uma família que lhe dê carinho e amor. E não pode ser eu e aí talvez seja melhor ele não viver mesmo... tem certeza que não dá para tira-lo? Fazer uma cirurgia?
O jovem médico, que não lembra em todos seus anos de estudo ter sido preparado para lidar com isso, propõe:
- Letícia se concentra nessa vontade que você tem de vê-lo feliz e pensa, ele já está quase no fim da gravidez. Usa essa desejo de vê-lo bem e vamos esperá-lo nascer. Depois ele pode ir pra adoção. E recém nascidos costumam ser adotados muito mais rápido.
Enquanto Letícia recua no silêncio de um novo choro, agora contido, o médico pede licença para buscar o supervisor, a residente mais velha, e discutir os pormenores. Um pedido de orientação é encaminhado para a assistência social da região. Voltando a sala com o supervisor, Letícia está mais calma. Concorda com o plano. Enquanto termina-se de solicitar exames de pré-natal e a consulta está para acabar, a paciente ainda pergunta
- Você acredita que ele vai mesmo conseguir uma família? Não quero meu fi... não quero essa criança jogada num orfanato, sem amor? Quero que ela receba amor, só que não posso...
- Acho que é o melhor que podemos fazer por ele - diz o profissional, mais inseguro do que gostaria, sem conhecer nada do sistema de adoção brasileiro ou do destino dos que pra lá vão.
Letícia, algo triste e cabisbaixa, sai da sala. Escondido na carteira, leva o cartão de pré-natal que toda gestante têm.
Letícia, algo triste e cabisbaixa, sai da sala. Escondido na carteira, leva o cartão de pré-natal que toda gestante têm.
sábado, 27 de maio de 2017
Sobre Brigas
Cinco anos atras. O acadêmico, recém iniciado nos mistérios da consulta médica, entra de forma tímida no hospital. Escolhe um dos quartos de pacientes e segue até o leito em busca de praticar as habilidades necessárias ao médico.
- Gostaria entrevistar e examinar a senhora, dona Orminda. Posso? Você seria uma verdadeira professora, compartilhando sua história comigo - fala de forma ensaiada, automática, as palavras que usa para abordar os pacientes na sua tarefa de treinar, mas que sabe raramente se reverter em qualquer atitude clínica para quem está no leito internado.
- Pode conversar, pode conversar - responde Orminda, os movimentos lentos de quem tem setenta anos, os olhos já leitosos, a voz cansada de uma mulher que viveu muito do serviço pesado na roça
- Tô internada por causa do diabetes - revela com tristeza na voz, que logo esclarece - vou ter que cortar o pé fora por causa dele
Desconcertado, o acadêmico apenas prossegue com as perguntas do roteiro, anotando as respostas:
- Já tem muitos anos, eu era moça quando começou
- Tento controlar mas na roça a gente gosta de um doce doutor
- Tenho quatro irmãos. Tinha seis mas dois já morreram. A mais nova só tem diabetes, os outros tem diabetes e pressão... e você tem irmãos doutor?
Pausa na conversa. Pego de surpresa pela inversão de papéis o acadêmico gagueja para responder
- Do... dois. Tenho dois.
- E eles vão bem?
- Vão sim. Na verdade nos vemos pouco, eles não moram aqui. E também quando a gente era mais novo brigava muito, o tempo todo.
O acadêmico interrompe. Acha que se abriu por demais? Não sabe, mal conhece as técnicas de entrevista. Dona Ormezina passa um tempo em silêncio. Finalmente se manifesta:
- Veja só, você briga com seus irmãos, nunca briguei com os meus. Lá em casa só brigo mesmo é com o Diabetes
Minutos mais tarde, o acadêmico sai do hospital - no papel os pormenores técnicos do quadro clínico, na cabeça, a lição da paciente. Cinco anos no futuro, agora recém formado, o jovem médico ainda às vezes briga com os familiares, com os amigos, com coisas pequenas. Mas não esquece de dona Orminda, e de tantas outras histórias que escutou. Tenta com cada ano, cada dia de pratica brigar menos pelas coisas bobas, e mais pelas que valem a pena. Para que possa sempre crescer, como médico, como pessoa, no contato com o outro.
- Gostaria entrevistar e examinar a senhora, dona Orminda. Posso? Você seria uma verdadeira professora, compartilhando sua história comigo - fala de forma ensaiada, automática, as palavras que usa para abordar os pacientes na sua tarefa de treinar, mas que sabe raramente se reverter em qualquer atitude clínica para quem está no leito internado.
- Pode conversar, pode conversar - responde Orminda, os movimentos lentos de quem tem setenta anos, os olhos já leitosos, a voz cansada de uma mulher que viveu muito do serviço pesado na roça
- Tô internada por causa do diabetes - revela com tristeza na voz, que logo esclarece - vou ter que cortar o pé fora por causa dele
Desconcertado, o acadêmico apenas prossegue com as perguntas do roteiro, anotando as respostas:
- Já tem muitos anos, eu era moça quando começou
- Tento controlar mas na roça a gente gosta de um doce doutor
- Tenho quatro irmãos. Tinha seis mas dois já morreram. A mais nova só tem diabetes, os outros tem diabetes e pressão... e você tem irmãos doutor?
Pausa na conversa. Pego de surpresa pela inversão de papéis o acadêmico gagueja para responder
- Do... dois. Tenho dois.
- E eles vão bem?
- Vão sim. Na verdade nos vemos pouco, eles não moram aqui. E também quando a gente era mais novo brigava muito, o tempo todo.
O acadêmico interrompe. Acha que se abriu por demais? Não sabe, mal conhece as técnicas de entrevista. Dona Ormezina passa um tempo em silêncio. Finalmente se manifesta:
- Veja só, você briga com seus irmãos, nunca briguei com os meus. Lá em casa só brigo mesmo é com o Diabetes
Minutos mais tarde, o acadêmico sai do hospital - no papel os pormenores técnicos do quadro clínico, na cabeça, a lição da paciente. Cinco anos no futuro, agora recém formado, o jovem médico ainda às vezes briga com os familiares, com os amigos, com coisas pequenas. Mas não esquece de dona Orminda, e de tantas outras histórias que escutou. Tenta com cada ano, cada dia de pratica brigar menos pelas coisas bobas, e mais pelas que valem a pena. Para que possa sempre crescer, como médico, como pessoa, no contato com o outro.
quinta-feira, 11 de maio de 2017
Gente Boa
Luiz, 21 anos, cabelos loiros colados de suor, aguarda no corredor ser chamado a consulta. Curva-se quase em posição fetal, enquanto tosse muito. Quando o médico abre a porta para chamá-lo, o agente de saúde primeiro conta
“Ele me deu a liberdade de te contar doutor que trabalha na boca lá em cima do morro, e que pega muita friagem e cheira pó as vezes”
O médico acena que entendeu e chama Luiz para entrar. Já o atendeu antes, por uma crise de asma, mas na primeira consulta nada foi falado de seu histórico.
“O que aconteceu Luiz?”
“Tossindo muito. To muito mal, não consigo mais sair de casa. Toda hora tosse. E sai um catarro até preto as vezes. Acho que to com febre Nem to conseguindo ir pro role.”
“Há quanto tempo?”
“2 meses”
“E emagreceu?”
“Muito. 14 quilos, perdi os músculos todos. To fraco, não saio de casa direito.”
O médico pensa em tuberculose, e em como será difícil tratá-lo. Faz algumas outras perguntas, e por fim entra no sigiloso assunto de seu trabalho.
“O agente me contou que você trabalha na boca Luiz”
“Sou, eu fico na tocaia da noite. Mas nem to indo mais não, não dá. Os cara mesmo falaram ‘vai pra casa, se trata, resolve isso aí’”
“E é tranquilo pra você ficar afastado?”
“Pô, lá é todo mundo parceiro, crescemos juntos. Falaram que até vão me pagar se precisar de alguma coisa, remédio, mesmo eu não trabalhando. É muita confiança, os caras lá são gente boa.”
“Ele me deu a liberdade de te contar doutor que trabalha na boca lá em cima do morro, e que pega muita friagem e cheira pó as vezes”
O médico acena que entendeu e chama Luiz para entrar. Já o atendeu antes, por uma crise de asma, mas na primeira consulta nada foi falado de seu histórico.
“O que aconteceu Luiz?”
“Tossindo muito. To muito mal, não consigo mais sair de casa. Toda hora tosse. E sai um catarro até preto as vezes. Acho que to com febre Nem to conseguindo ir pro role.”
“Há quanto tempo?”
“2 meses”
“E emagreceu?”
“Muito. 14 quilos, perdi os músculos todos. To fraco, não saio de casa direito.”
O médico pensa em tuberculose, e em como será difícil tratá-lo. Faz algumas outras perguntas, e por fim entra no sigiloso assunto de seu trabalho.
“O agente me contou que você trabalha na boca Luiz”
“Sou, eu fico na tocaia da noite. Mas nem to indo mais não, não dá. Os cara mesmo falaram ‘vai pra casa, se trata, resolve isso aí’”
“E é tranquilo pra você ficar afastado?”
“Pô, lá é todo mundo parceiro, crescemos juntos. Falaram que até vão me pagar se precisar de alguma coisa, remédio, mesmo eu não trabalhando. É muita confiança, os caras lá são gente boa.”
Após breve hesitação, o médico registra no prontuário ‘paciente com boa rede de apoio em trabalho.’ Segue a consulta abordando o uso de drogas e a importância de Luiz ficar sóbrio, finalizando com os pedidos de exame para tuberculose. O paciente agradece a atenção, promete se comprometer com o tratamento. Quer ficar bem para andar de moto, que gosta muito. Na cabeça do médico um trecho da música de Criolo - as pessoas não são más, elas só estão perdidas.
sexta-feira, 14 de abril de 2017
Aniversário
Oncológico Infantil. Maria com seu filho Arthur de 9 anos discutem o futuro tratamento do menino. Para ajudar os acadêmicos que não conhecem a história, a professora relata rapidamente o caso.
Na educação física Arthur caiu, um tombo bobo, ralou só o joelho...
e quebrou a perna em três lugares.
Criança não quebra a perna fácil. O pediatra logo encaminha pra onco, diagnóstico: Leucemia.
A primeira quimioterapia não funciona, e refazem os exames e o diagnóstico. Tumor raro, nome difícil de pronunciar.
Na educação física Arthur caiu, um tombo bobo, ralou só o joelho...
e quebrou a perna em três lugares.
Criança não quebra a perna fácil. O pediatra logo encaminha pra onco, diagnóstico: Leucemia.
A primeira quimioterapia não funciona, e refazem os exames e o diagnóstico. Tumor raro, nome difícil de pronunciar.
Momento atual.
"Como falei, vamos iniciar agora outro tipo de quimioterapia, apropriado. Mas olha, já atrasamos muito por causa da cirurgia de semana passada. Quero começar próxima quinta, ok?"
"Claro, vamos começar o mais rápido para resolver isso logo, né meu querido?" responde a mãe rindo, e abraçando o filho carinhosa.
"Quinta dia 11, certo?"
"Não, onze não!" brada Arthur em réplica "É seu aniversário mãe"
"Larga de ser bobo menino" replica a mãe, com novo riso bem humorado "to ficando velha, nem gosto de comemorar. E a gente tem que te tratar logo"
"Não mãe! É sua festa, não quero ficar no hospital"
Mãe e filho trocam olhares. Maria protesta baixinho, a voz engasgando, o riso quase virando choro "larga de ser bobo..."
A médica interrompe prontamente "Ora, quando digo que não pode atrasar é uma semana, duas. Mas um dia não tem problema né? Ainda mais aniversário dessa mãezona. Vou combinar com o hospital, a gente interna o Arthur na sexta 12, tudo bem?"
Arthur olha rindo para a oncopediatra, e acena um ok. A mãe também acena com a cabeça, sorrindo. Preenchido as receitas e explicado os detalhes, mãe e filho saem do consultório discutindo os salgadinhos da festa. O acadêmico que acompanha o atendimento segura o choro. Quando chega em casa, lida com as emoções como sabe: escreve.
"Como falei, vamos iniciar agora outro tipo de quimioterapia, apropriado. Mas olha, já atrasamos muito por causa da cirurgia de semana passada. Quero começar próxima quinta, ok?"
"Claro, vamos começar o mais rápido para resolver isso logo, né meu querido?" responde a mãe rindo, e abraçando o filho carinhosa.
"Quinta dia 11, certo?"
"Não, onze não!" brada Arthur em réplica "É seu aniversário mãe"
"Larga de ser bobo menino" replica a mãe, com novo riso bem humorado "to ficando velha, nem gosto de comemorar. E a gente tem que te tratar logo"
"Não mãe! É sua festa, não quero ficar no hospital"
Mãe e filho trocam olhares. Maria protesta baixinho, a voz engasgando, o riso quase virando choro "larga de ser bobo..."
A médica interrompe prontamente "Ora, quando digo que não pode atrasar é uma semana, duas. Mas um dia não tem problema né? Ainda mais aniversário dessa mãezona. Vou combinar com o hospital, a gente interna o Arthur na sexta 12, tudo bem?"
Arthur olha rindo para a oncopediatra, e acena um ok. A mãe também acena com a cabeça, sorrindo. Preenchido as receitas e explicado os detalhes, mãe e filho saem do consultório discutindo os salgadinhos da festa. O acadêmico que acompanha o atendimento segura o choro. Quando chega em casa, lida com as emoções como sabe: escreve.
Aprendi com meu pai
Chega Hilmara, 53 anos com uma blusa florida e um sorriso aberto, e um coque de cabelos grisalhos bem repuxado e sério. Vem porque a glicose estava alta.
- Já foi duas vezes. Mas eu não senti nada, fui medir por que minha irmã tem Diabetes
A médica mais velha, procurando ensinar ao mais novo os caminhos de uma consulta centrada na pessoa, investiga
- E como a senhora lida com essa ideia da Diabetes, dona Hilmara?
- Ah pra mim tudo bem. A vida é assim mesmo. Se eu tiver, vou tratar!
- É, a senhora não fica preocupada? Entende que vai ser um tratamento diário?
- Olha, tem coisas que Deus decide. Se eu tiver, trato. Tive que terminar com meu marido porque ele tava me traindo veja só, ai fui fazer os exames do HIV. A Sífilis não tinha, Hepatite não tinha, mas antes de entregar o do HIV a enfermeira perguntou "e se a senhora tiver a doença, como vai ser?" Falei "Vou tratar ué. Não tem outra coisa"
Tranquilizados, seguimos a consulta. A consulta prossegue. Uma glicemia capilar de quase 300, junto com outra de sangue que ela fez com a irmã confirmam o diagnóstico. Explicamos a dona Hilmara, que escuta e diz que irá tratar, podemos ter certeza!
No processo de fazer a receita e preencher os prontuários, fica um silêncio, que ela logo preenche
- Desde o primeiro dia que a glicose deu alta eu já cortei refrigerante e o chocolate que eu gosto, sabe? Não bebi uma gota, nem no cachorro-quente da igreja, todo mundo bebendo! É que aprendi com meu pai, ele era assim sabe? Falava "Ou cê faz uma coisa até o fim, ou melhor nem começar!" e a gente fazia né.
Mais um pequeno silêncio, e logo emenda
- Até porque, se a gente não fizesse era chinelo na certa!
- Já foi duas vezes. Mas eu não senti nada, fui medir por que minha irmã tem Diabetes
A médica mais velha, procurando ensinar ao mais novo os caminhos de uma consulta centrada na pessoa, investiga
- E como a senhora lida com essa ideia da Diabetes, dona Hilmara?
- Ah pra mim tudo bem. A vida é assim mesmo. Se eu tiver, vou tratar!
- É, a senhora não fica preocupada? Entende que vai ser um tratamento diário?
- Olha, tem coisas que Deus decide. Se eu tiver, trato. Tive que terminar com meu marido porque ele tava me traindo veja só, ai fui fazer os exames do HIV. A Sífilis não tinha, Hepatite não tinha, mas antes de entregar o do HIV a enfermeira perguntou "e se a senhora tiver a doença, como vai ser?" Falei "Vou tratar ué. Não tem outra coisa"
Tranquilizados, seguimos a consulta. A consulta prossegue. Uma glicemia capilar de quase 300, junto com outra de sangue que ela fez com a irmã confirmam o diagnóstico. Explicamos a dona Hilmara, que escuta e diz que irá tratar, podemos ter certeza!
No processo de fazer a receita e preencher os prontuários, fica um silêncio, que ela logo preenche
- Desde o primeiro dia que a glicose deu alta eu já cortei refrigerante e o chocolate que eu gosto, sabe? Não bebi uma gota, nem no cachorro-quente da igreja, todo mundo bebendo! É que aprendi com meu pai, ele era assim sabe? Falava "Ou cê faz uma coisa até o fim, ou melhor nem começar!" e a gente fazia né.
Mais um pequeno silêncio, e logo emenda
- Até porque, se a gente não fizesse era chinelo na certa!
domingo, 9 de abril de 2017
Forró Devagarinho
Dona Maria entra com 62 anos, rugas e manchas de sol, e um sorriso simpático. Vem porque os eosinófilos, um tipo de células branca, subiram muito. Conta que sempre foi alérgica, passou a vida com asma, até que um dia a medula passou dos limites. Os eosinófilos atacaram coração, nervos da perna, pulmão. "Mas agora To controlada" diz, encerrando sua história.
Enquanto os acadêmicos anotam o prontuário, Maria suspira e comenta:
"Queria ser uma dessas velhinhas das pernas boas, dançante, mas aí vem as doenças e puxa o tapete da gente."
"Então a senhora gostava de dançar?"
"Gostava" confirma Dona Maria "Dançar aquele forró arrasta pé era bom demais! Não danço mais porque os nervos das pernas não deixam mais né."
"E será que não dá pra dançar de levinho?" sugere o acadêmico em ato reflexo, desejoso de estimular a alegria da paciente.
Dona Maria ri um riso de criança sapeca, e abaixa a voz, como revelando um segredo "de levinho danço! Na formatura da minha filha ela me puxou pra dançar, dois passos pra cá e pra lá."
"Devagarinho né?"
"Exatamente! Falei com ela, só não pode rodopiar, tem que ficar só nos dois passos, devagarinho!"
Enquanto os acadêmicos anotam o prontuário, Maria suspira e comenta:
"Queria ser uma dessas velhinhas das pernas boas, dançante, mas aí vem as doenças e puxa o tapete da gente."
"Então a senhora gostava de dançar?"
"Gostava" confirma Dona Maria "Dançar aquele forró arrasta pé era bom demais! Não danço mais porque os nervos das pernas não deixam mais né."
"E será que não dá pra dançar de levinho?" sugere o acadêmico em ato reflexo, desejoso de estimular a alegria da paciente.
Dona Maria ri um riso de criança sapeca, e abaixa a voz, como revelando um segredo "de levinho danço! Na formatura da minha filha ela me puxou pra dançar, dois passos pra cá e pra lá."
"Devagarinho né?"
"Exatamente! Falei com ela, só não pode rodopiar, tem que ficar só nos dois passos, devagarinho!"
Só quero que tire tudo
Os acadêmicos do hospital vão até o leito 11 conhecer o caso. Selma, 42 anos, internada na ginecologia para retirada da mama. Magrinha, do sorriso amarelo, de pele cobreada e cabelos curtos, Selma conta com palavras diretas:
- É, eu descobri num exame de rotina né. Aí já falei com médico que podia tirar logo. Mas eles enfiaram um fio, tiraram a biópsia. Aí depois decidiram tirar só um pedaço né, pra deixar o peito. Só que aí agora recebi o resultado do pedaço, e tinha mais câncer. Então vou tirar o resto.
- Vai tirar a mama inteira então dona Selma?
- Isso, agora sai tudo
- E vai reconstruir?
- Ah eu falei com médico. Só quero que tire tudo logo! O importante é tá bem, tenho três filhos pra cuidar, depois eu penso nisso.
O professor intervém e explica: Foi discutido com ela que poderíamos fazer só a mastectomia simples, ou poderíamos já fazer a cirurgia com a plástica, numa abordagem reconstrutora, que envolveria colocar prótese. Seria necessário protése também na mama contralateral, para deixar simétrica. A outra opção é uma reconstrução posterior, após a recuperação da primeira cirurgia.
Acenando em concordância com o professor, nossa paciente torna a dizer:
- É mas eu só quero que acabe com isso logo. O peito a gente resolve depois
Uma das acadêmicas, curiosa, acaba por questionar:
- E o marido Dona Selma?
A mulher é categórica: - Acabou de sair dum infarto, não tá podendo ter essas atividades lá em casa não! Até porque com meu peito preocupo eu
- É, eu descobri num exame de rotina né. Aí já falei com médico que podia tirar logo. Mas eles enfiaram um fio, tiraram a biópsia. Aí depois decidiram tirar só um pedaço né, pra deixar o peito. Só que aí agora recebi o resultado do pedaço, e tinha mais câncer. Então vou tirar o resto.
- Vai tirar a mama inteira então dona Selma?
- Isso, agora sai tudo
- E vai reconstruir?
- Ah eu falei com médico. Só quero que tire tudo logo! O importante é tá bem, tenho três filhos pra cuidar, depois eu penso nisso.
O professor intervém e explica: Foi discutido com ela que poderíamos fazer só a mastectomia simples, ou poderíamos já fazer a cirurgia com a plástica, numa abordagem reconstrutora, que envolveria colocar prótese. Seria necessário protése também na mama contralateral, para deixar simétrica. A outra opção é uma reconstrução posterior, após a recuperação da primeira cirurgia.
Acenando em concordância com o professor, nossa paciente torna a dizer:
- É mas eu só quero que acabe com isso logo. O peito a gente resolve depois
Uma das acadêmicas, curiosa, acaba por questionar:
- E o marido Dona Selma?
A mulher é categórica: - Acabou de sair dum infarto, não tá podendo ter essas atividades lá em casa não! Até porque com meu peito preocupo eu
sexta-feira, 7 de abril de 2017
Sobre acreditar
Entra, 52 anos, com a caminhada lenta e segurando a bolsa com as duas mãos a paciente Amanda.
"Doutor, tem alguma coisa ruim na minha barriga! O senhor precisa descobrir o que é"
Respiro e começo a entrevista. Pacientes com ideias fixadas em algumas doenças são com freqüência difícil de abordar.
"Sente dor?" "Vai no banheiro de quanto em quanto tempo?" "Como são as fezes?" "E a alimentação?"
Amanda descreve viver a base de macarrão, arroz e feijão. Sem verduras, sem legumes. Pouca carne por conta da crise - e das reportagens da tevê.
"Mas não podem ser só gases doutor! Tem alguma coisa aqui"
"Tem algum familiar que tenha casos de câncer dona Amanda? Algum colega próximo que sofreu disso?"
Amanda silencia. "O senhor é evangélico doutor?"
"Acredito em Deus dona Amanda" escapo pela tangente. O confronto não beneficiaria o atendimento.
"É que uma irmã da igreja falou comigo, durante o culto. Uma falou e a outra traduziu e disse que Jesus disse 'procure um médico da terra'"
"Entendi Amanda. A gente vai te examinar"
No exame físico, o coração bate diferente. Perguntas rápidas revelam que Amanda tem falta de ar quando sobe escadas. Edema nas pernas. Já desconfiava disso, mas não sabe direito tomar todos os remédios (ela me conta, e o prontuário confirma, que são quatro), e os filhos não auxiliam.
"É que não sei ler a receita, não tenho estudo. Mas eles não leem pra mim, acham minha doença é invenção. Já pedi pra outra médica até mandar carta pra eles, mas eles não acreditam. Não vem aqui na consulta"
Registro a informação, pensativo, e volto ao exame.
"O abdome da senhora está normal dona Amanda. Me parece que realmente são gases. Por enquanto a gente tenta alguns remédios, o mais importante é mudar a dieta. Também precisamos rever as receitas do coração pra entender melhor. A gente reavalia em quinze dias, que tal?"
"Mas nem ultrassom doutor?"
"Não precisa"
Amanda rejeita a idéia com força "O doutor está dizendo que o meu Deus é falso? Ele me falou! Falou que havia alguma coisa, que eu precisava vir ao médico!"
Silêncio. Respiro, e tento novamente a tangente "O Deus da senhora não é falso dona Amanda. E eu acredito que se a senhora sente, tem alguma coisa na sua barriga. Mas na medicina a gente dá um passo de cada vez, primeiro tentamos o mais simples, não tem sinal de gravidade" lembrando do sermão de um amigo querido que uma vez ouvi, ainda complemento "Os planos de Deus para nós não são os planos que nós temos pra nós mesmos. As vezes é parte do plano dele esperar. E a gente vai te reavaliar. O que a senhora acha? Ou a senhora queria muito o ultrassom?"
Amanda abaixa a cabeça, não sei se pensativa ou se resignada. Mas logo responde:
"Queria mesmo é que meus filhos acreditassem em mim"
"Doutor, tem alguma coisa ruim na minha barriga! O senhor precisa descobrir o que é"
Respiro e começo a entrevista. Pacientes com ideias fixadas em algumas doenças são com freqüência difícil de abordar.
"Sente dor?" "Vai no banheiro de quanto em quanto tempo?" "Como são as fezes?" "E a alimentação?"
Amanda descreve viver a base de macarrão, arroz e feijão. Sem verduras, sem legumes. Pouca carne por conta da crise - e das reportagens da tevê.
"Mas não podem ser só gases doutor! Tem alguma coisa aqui"
"Tem algum familiar que tenha casos de câncer dona Amanda? Algum colega próximo que sofreu disso?"
Amanda silencia. "O senhor é evangélico doutor?"
"Acredito em Deus dona Amanda" escapo pela tangente. O confronto não beneficiaria o atendimento.
"É que uma irmã da igreja falou comigo, durante o culto. Uma falou e a outra traduziu e disse que Jesus disse 'procure um médico da terra'"
"Entendi Amanda. A gente vai te examinar"
No exame físico, o coração bate diferente. Perguntas rápidas revelam que Amanda tem falta de ar quando sobe escadas. Edema nas pernas. Já desconfiava disso, mas não sabe direito tomar todos os remédios (ela me conta, e o prontuário confirma, que são quatro), e os filhos não auxiliam.
"É que não sei ler a receita, não tenho estudo. Mas eles não leem pra mim, acham minha doença é invenção. Já pedi pra outra médica até mandar carta pra eles, mas eles não acreditam. Não vem aqui na consulta"
Registro a informação, pensativo, e volto ao exame.
"O abdome da senhora está normal dona Amanda. Me parece que realmente são gases. Por enquanto a gente tenta alguns remédios, o mais importante é mudar a dieta. Também precisamos rever as receitas do coração pra entender melhor. A gente reavalia em quinze dias, que tal?"
"Mas nem ultrassom doutor?"
"Não precisa"
Amanda rejeita a idéia com força "O doutor está dizendo que o meu Deus é falso? Ele me falou! Falou que havia alguma coisa, que eu precisava vir ao médico!"
Silêncio. Respiro, e tento novamente a tangente "O Deus da senhora não é falso dona Amanda. E eu acredito que se a senhora sente, tem alguma coisa na sua barriga. Mas na medicina a gente dá um passo de cada vez, primeiro tentamos o mais simples, não tem sinal de gravidade" lembrando do sermão de um amigo querido que uma vez ouvi, ainda complemento "Os planos de Deus para nós não são os planos que nós temos pra nós mesmos. As vezes é parte do plano dele esperar. E a gente vai te reavaliar. O que a senhora acha? Ou a senhora queria muito o ultrassom?"
Amanda abaixa a cabeça, não sei se pensativa ou se resignada. Mas logo responde:
"Queria mesmo é que meus filhos acreditassem em mim"
quarta-feira, 8 de março de 2017
Mais anos que você de vida
Dona Emerilda, 66 anos, entra na sala do pronto socorro já anunciando seu diagnostico.
- É que tenho DPOC doutor, e ontem começou tosse forte com secreção purulenta e dispnéia
Surpreso pelo vocabulário técnico, não resisto a confirmar coloquialmente - então a senhora está com catarro amarelado e falta de ar?
- Isso mesmo. É uma crise da DPOC.
Penso o mesmo que dona Emerilda, mas não falo. A consulta continua com história e exame compatível com DPOC exacerbada.
No fim explico que precisaremos de um raio-X, oxigênio e medicamentos na veia. Decido acompanhar dona Emerilda pelos corredores do pronto atendimento, já que é a primeira paciente que irei internar. No caminho, uma funcionaria a cumprimenta e elas papeiam.
- Trabalhou comigo lá na Santa Casa, gente boníssima - explica Emerilda ao final.
- Então a senhora já trabalhou em hospital?
- Ih, foram 29 anos, 2 meses e 4 dias. Quantos você tem meu filho?
- 24 anos - Sorrio com a vergonha de uma criança descoberta brincando de ser adulto.
- Mais anos que você tem de vida! Mas no final tive de pedir demissão. Meu filho morreu de acidente de moto, e não conseguia mais trabalhar vendo gente internada. Não quiseram me aposentar, aí pedi pra sair.
Me vem assim, junto ao entendimento do vocabulário técnico, a certeza de que pacientes são narrativas complexas, sempre maiores que suas doenças; mesmo no atendimento corrido de um pronto socorro.
- É que tenho DPOC doutor, e ontem começou tosse forte com secreção purulenta e dispnéia
Surpreso pelo vocabulário técnico, não resisto a confirmar coloquialmente - então a senhora está com catarro amarelado e falta de ar?
- Isso mesmo. É uma crise da DPOC.
Penso o mesmo que dona Emerilda, mas não falo. A consulta continua com história e exame compatível com DPOC exacerbada.
No fim explico que precisaremos de um raio-X, oxigênio e medicamentos na veia. Decido acompanhar dona Emerilda pelos corredores do pronto atendimento, já que é a primeira paciente que irei internar. No caminho, uma funcionaria a cumprimenta e elas papeiam.
- Trabalhou comigo lá na Santa Casa, gente boníssima - explica Emerilda ao final.
- Então a senhora já trabalhou em hospital?
- Ih, foram 29 anos, 2 meses e 4 dias. Quantos você tem meu filho?
- 24 anos - Sorrio com a vergonha de uma criança descoberta brincando de ser adulto.
- Mais anos que você tem de vida! Mas no final tive de pedir demissão. Meu filho morreu de acidente de moto, e não conseguia mais trabalhar vendo gente internada. Não quiseram me aposentar, aí pedi pra sair.
Me vem assim, junto ao entendimento do vocabulário técnico, a certeza de que pacientes são narrativas complexas, sempre maiores que suas doenças; mesmo no atendimento corrido de um pronto socorro.
Conselhos de Rebolado
Entrou com apoio da filha, carregando o peso de mais de nove décadas. Segundo a filha, vinha para saber dos rins, mas dona Alzira, risonha, parecia mais interessada em contar histórias.
Trazia todos os exames de rotina, e a filha anunciou que a diabetes ia bem (três dias antes haviam passado na endocrinologista). Já o braço doía, quebrado pela terceira vez por cair da cama. "Mas tudo bem, já to acostumada, já me aconteceu muita coisa minha filha" falava Alzira para a acadêmica que a atendia "quando ainda nem era grávida dessa daqui viajei a cavalo para a cidade, no caminho a gente teve que dormir no relento e uma caixa caiu e quebrou meu dedo..."
"Mãe não é isso que ela perguntou! O braço já tá quase recuperado, a gente tá acompanhando direitinho com o Reumatologista. Ela quebra fácil porque têm osteoporose."
Continua por um tempo a entrevista, numa danca de histórias interrompidas por respostas objetivas da filha. Ouvimos do marido que morreu mas não sabemos como, ouvimos da vez que a filha nasceu (parto em casa) mas não conclui-se o conto. Entre a impaciência da filha e as "necessidades" objetivas do atendimento, coletamos trechos de dona Alzira.
Para o grand finale, a contadora de histórias pega na mão da acadêmica ao fim da consulta e pergunta
"Tem marido minha pequena?"
"Não, estou solteira dona Alzira"
Em tom pausado, como quem conta lembrando, ela aconselha: "Olha, não tenha medo de arranjar marido não. Não fica com medo do rebolado não!" Pausa com risos. "To há quarentas anos sem rebolado porque o marido morreu, e faz falta viu...
Mas arranja um marido bom, que ai o rebolado é bom, e tudo é bom!"
Em tom pausado, como quem conta lembrando, ela aconselha: "Olha, não tenha medo de arranjar marido não. Não fica com medo do rebolado não!" Pausa com risos. "To há quarentas anos sem rebolado porque o marido morreu, e faz falta viu...
Mas arranja um marido bom, que ai o rebolado é bom, e tudo é bom!"
A filha, meio corada de vergonha, começa a arrastar para fora do consultório a mãe, que, sem se calar, repete algumas vezes: o rebolado é bom, não foge não!
sexta-feira, 3 de março de 2017
O creme
Entrou com 75 anos e um sorriso simpático. Tinha poucas rugas no rosto, e muita pele nos braços magros. Perguntei o que a trazia pra atendimento, e me falou que era só ver exame.
"E também não tenho dormido muito bem..." deixa escapar de ultima hora. Começo, passo a passo, a perguntar do sono, da ansiedade, da vida. Diz que chora as vezes, que acorda e fica deitada pensando no marido e nos irmãos que já se foram. Fala que a vizinha toma um remédio pra dormir que experimentou e deu certo. Logo me alarmo.
Os "zepams" da vida, usado por muitas pessoas com problemas de sono, são grandes vilões disfarçados. Nublam a mente, diminuem os sentimentos, e quando se usa por muito tempo, começam a apagar a memória em uma demência causada por remédio. Muita gente usa. Muita gente adora cair na paralisia pacífica da droga.
"Dona Marilda, vou conversar com o médico, mas acho que podemos pensar em um fitoterápico, talvez um remédio para depressão leve que vá ajudar no sono de outro jeito" falo, já tentando evitar a armadilha de ceder ao uso de Clonazepam para insônia.
"E a senhora sente algo mais?"
A paciente hesita, e aguardo.
"Queria um creme também doutor. To muito ressecada"
"A pele, Dona Marilda?"
"Não não" e ri sem graça "para ter relação. É que como to muito sozinha procurei sabe, aí conheci um moço... mas doeu muito..."
Rio por dentro, tentando não rir por fora. Rio não de Dona Marilda, aos 75, querendo um creme para manter a vida sexual bem funcionante, isso é na verdade lindo. Rio por alivio, Dona Marilda já sozinha encontrando caminhos para fora de sua possível depressão, vivendo a vida, conhecendo um moço novo. Rio porque ao invés de um Zepam, trataremos de Marilda com creme vaginal, quiça o bom e conhecido KY.
"E também não tenho dormido muito bem..." deixa escapar de ultima hora. Começo, passo a passo, a perguntar do sono, da ansiedade, da vida. Diz que chora as vezes, que acorda e fica deitada pensando no marido e nos irmãos que já se foram. Fala que a vizinha toma um remédio pra dormir que experimentou e deu certo. Logo me alarmo.
Os "zepams" da vida, usado por muitas pessoas com problemas de sono, são grandes vilões disfarçados. Nublam a mente, diminuem os sentimentos, e quando se usa por muito tempo, começam a apagar a memória em uma demência causada por remédio. Muita gente usa. Muita gente adora cair na paralisia pacífica da droga.
"Dona Marilda, vou conversar com o médico, mas acho que podemos pensar em um fitoterápico, talvez um remédio para depressão leve que vá ajudar no sono de outro jeito" falo, já tentando evitar a armadilha de ceder ao uso de Clonazepam para insônia.
"E a senhora sente algo mais?"
A paciente hesita, e aguardo.
"Queria um creme também doutor. To muito ressecada"
"A pele, Dona Marilda?"
"Não não" e ri sem graça "para ter relação. É que como to muito sozinha procurei sabe, aí conheci um moço... mas doeu muito..."
Rio por dentro, tentando não rir por fora. Rio não de Dona Marilda, aos 75, querendo um creme para manter a vida sexual bem funcionante, isso é na verdade lindo. Rio por alivio, Dona Marilda já sozinha encontrando caminhos para fora de sua possível depressão, vivendo a vida, conhecendo um moço novo. Rio porque ao invés de um Zepam, trataremos de Marilda com creme vaginal, quiça o bom e conhecido KY.
Dor nas costas
Senhora de 52 anos, vem ao ambulatório de nefrologia por causa da pressão alta. Anda devagar, cabeça baixa, carregando um casaco de crochê que lembra aqueles de vó.
É um caso simples. Conta que mede a pressão no posto, e vai bem. Perguntamos de outras queixas, mas a princípio não existem. Tudo parece incrivelmente simples. Em silêncio penso que apenas teremos de renovar a receita. Mas ao fim da consulta médica, aprendemos, deve sempre haver uma última estruturada e curiosa pergunta:
- Existe alguma coisa que não perguntamos e a senhora deseje falar?
- Não, nada não... *a paciente hesita, e percebendo, aguardamos* Bem, tem a dor nas costas, mas isso é antigo, e por causa da filha né
- Por causa da filha? - incitamos a senhora a continuar
- É, minha filha é paralítica desde criança e faz hemodiálise. Ela já tá com 17 anos e tá pesada, e como eu que ajudo no banho, que boto e tiro ela da cadeira, as costas doem né...
Nós acadêmicos ficamos um momento sem resposta. Uma simples pergunta, e descortina-se uma dor nas costas já velha amiga, que por pouco a paciente não esquece de falar. Do tipo que não basta renovar a receita para (tentar) tratar.
É um caso simples. Conta que mede a pressão no posto, e vai bem. Perguntamos de outras queixas, mas a princípio não existem. Tudo parece incrivelmente simples. Em silêncio penso que apenas teremos de renovar a receita. Mas ao fim da consulta médica, aprendemos, deve sempre haver uma última estruturada e curiosa pergunta:
- Existe alguma coisa que não perguntamos e a senhora deseje falar?
- Não, nada não... *a paciente hesita, e percebendo, aguardamos* Bem, tem a dor nas costas, mas isso é antigo, e por causa da filha né
- Por causa da filha? - incitamos a senhora a continuar
- É, minha filha é paralítica desde criança e faz hemodiálise. Ela já tá com 17 anos e tá pesada, e como eu que ajudo no banho, que boto e tiro ela da cadeira, as costas doem né...
Nós acadêmicos ficamos um momento sem resposta. Uma simples pergunta, e descortina-se uma dor nas costas já velha amiga, que por pouco a paciente não esquece de falar. Do tipo que não basta renovar a receita para (tentar) tratar.
O rei caminhoneiro
Tem já quase setenta, vem pra acompanhamento da pressão alta. Quando pergunto como passa desde a última consulta, começa com a voz meio arrastada, meio timidez:
- Ah, doutor, olha eu vou contar a verdade né - olha em volta - desde domingo to sentindo uma dor aqui *e aponta a parte baixa da barriga* e nos testículos. Mas vou falar a verdade, to há cinco anos que o amigo de baixo já é defunto...
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Mais tarde, examinando o senhor, diagnosticamos uma provável Orquite. O preceptor, embora não haja nenhum sintoma para desconfiar da doença, decide por perguntar:
- E gonorréia, já teve?
- Doutor, eu fui caminhoneiro. No Rio de Janeiro era conhecido como Rei da Gonorréia.
Rimos com o paciente. Em minha cabeça, me lembro do romance Menino de Engenho, e de que essa doença sexualmente transmissível já foi vista por muitos como atestado de virilidade. Nosso paciente é homem do mundo e, não duvido, tem certo orgulho do título. No fim, somos orientados a receitar remédio para os dois, gonorréia e orquite. Só por segurança.
Usar Biquini
A mãe termina de despir a filha, 1 mês de vida. Olhos arregalados, a barriga proeminente (todo bebê tem barriguinha proeminente) coberta por uma faixa no umbigo. O professor tira a faixa
"Olha, o umbigo já secou, isso daqui não precisa não"
"É porque ainda tá pra fora, tá muito alto o umbigo dela doutor!" justifica a mãe sem tirar os olhos da filha, vigiando as mãos do médico.
"É, mas a faixa não vai ajudar. O umbigo volta pra dentro sozinho no seu tempo. Pode deixar que ela vai virar uma menina bonita..."
"Vai ficar pra dentro então sem fazer nada?"
"Vai, vai sim. Tem gente que põe moeda, faz simpatia, mas é só esperar que o umbigo entra. Vai crescer bonita e poder usar biquini"
Os pais riem, satisfeitos. Muito ainda pode acontecer no futuro daquela filhinha, mas o umbigo não será um problema.
"É porque ainda tá pra fora, tá muito alto o umbigo dela doutor!" justifica a mãe sem tirar os olhos da filha, vigiando as mãos do médico.
"É, mas a faixa não vai ajudar. O umbigo volta pra dentro sozinho no seu tempo. Pode deixar que ela vai virar uma menina bonita..."
"Vai ficar pra dentro então sem fazer nada?"
"Vai, vai sim. Tem gente que põe moeda, faz simpatia, mas é só esperar que o umbigo entra. Vai crescer bonita e poder usar biquini"
Os pais riem, satisfeitos. Muito ainda pode acontecer no futuro daquela filhinha, mas o umbigo não será um problema.
Boca de Cão
70 e alguns anos, já meio careca, o corpo bem emagrecido da Diabetes que carrega há mais de 20. Vem com a irmã. Tem a fala desorientada, de quem começa a se perder na própria cabeça, e repete algumas vezes que cresceu na roça. Pergunto dos remédios que toma.
- A insulina dotô. O outro não tomava, ai agora tomo insulina. Queria parar de tomar mas não tem cura né *aceno em concordância* Não tem cura não. Essa boba aí acha que tem, pagou 200 R$ praqueles boca de cão fica gritando lá em casa.
A irmã reage - Não fala assim do pastor.
- Falo mesmo! Sai gritando c'ocê vai levantar e ficar curado. Vai nada sô! Só quem cura de verdade é Deus. Esses daí, tudo boca de cão!
- A insulina dotô. O outro não tomava, ai agora tomo insulina. Queria parar de tomar mas não tem cura né *aceno em concordância* Não tem cura não. Essa boba aí acha que tem, pagou 200 R$ praqueles boca de cão fica gritando lá em casa.
A irmã reage - Não fala assim do pastor.
- Falo mesmo! Sai gritando c'ocê vai levantar e ficar curado. Vai nada sô! Só quem cura de verdade é Deus. Esses daí, tudo boca de cão!
Mentiras
Tinha 72 anos, os cabelos tingidos já começando a crescer brancos, e um leve sotaque português. "Eu tenho esquecido muito" relata, e discorre sobre como se perdeu no bairro, já não sabia dizer ao taxista aonde morava.
Preocupados, os acadêmicos decidem por aplicar um questionário sobre as capacidades mentais. Para tal, para melhor conhece-la, perguntamos da escola: "Ah, quando mamãe morreu eu tinha 8 anos, e tive de parar o estudo no segundo ano. Tentei seguir a noite, porque trabalhava, mas não deu. Mas olha, fora daqui eu minto, falo que cheguei até a quinta série."
Entre as avaliações do questionário mini-mental, pedimos que ela escreva no papel uma frase de autoria própria.
"Eu vou escrever uma coisa aqui, mas é mentira, tá?"
No papel que recebo de volta, letras meio tremidas, a frase: Eu sou feliz.
Preocupados, os acadêmicos decidem por aplicar um questionário sobre as capacidades mentais. Para tal, para melhor conhece-la, perguntamos da escola: "Ah, quando mamãe morreu eu tinha 8 anos, e tive de parar o estudo no segundo ano. Tentei seguir a noite, porque trabalhava, mas não deu. Mas olha, fora daqui eu minto, falo que cheguei até a quinta série."
Entre as avaliações do questionário mini-mental, pedimos que ela escreva no papel uma frase de autoria própria.
"Eu vou escrever uma coisa aqui, mas é mentira, tá?"
No papel que recebo de volta, letras meio tremidas, a frase: Eu sou feliz.
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