sábado, 27 de maio de 2017

Sobre Brigas

Cinco anos atras. O acadêmico, recém iniciado nos mistérios da consulta médica, entra de forma tímida no hospital. Escolhe um dos quartos de pacientes e segue até o leito em busca de praticar as habilidades necessárias ao médico.
- Gostaria entrevistar e examinar a senhora, dona Orminda. Posso? Você seria uma verdadeira professora, compartilhando sua história comigo - fala de forma ensaiada, automática, as palavras que usa para abordar os pacientes na sua tarefa de treinar, mas que sabe raramente se reverter em qualquer atitude clínica para quem está no leito internado.
- Pode conversar, pode conversar - responde Orminda, os movimentos lentos de quem tem setenta anos, os olhos já leitosos, a voz cansada de uma mulher que viveu muito do serviço pesado na roça
- Tô internada por causa do diabetes - revela com tristeza na voz, que logo esclarece - vou ter que cortar o pé fora por causa dele
Desconcertado, o acadêmico apenas prossegue com as perguntas do roteiro, anotando as respostas:
- Já tem muitos anos, eu era moça quando começou
- Tento controlar mas na roça a gente gosta de um doce doutor
- Tenho quatro irmãos. Tinha seis mas dois já morreram. A mais nova só tem diabetes, os outros tem diabetes e pressão... e você tem irmãos doutor?
Pausa na conversa. Pego de surpresa pela inversão de papéis o acadêmico gagueja para responder
- Do... dois. Tenho dois.
- E eles vão bem?
- Vão sim. Na verdade nos vemos pouco, eles não moram aqui. E também quando a gente era mais novo brigava muito, o tempo todo.
O acadêmico interrompe. Acha que se abriu por demais? Não sabe, mal conhece as técnicas de entrevista. Dona Ormezina passa um tempo em silêncio. Finalmente se manifesta:
- Veja só, você briga com seus irmãos, nunca briguei com os meus. Lá em casa só brigo mesmo é com o Diabetes
Minutos mais tarde, o acadêmico sai do hospital - no papel os pormenores técnicos do quadro clínico, na cabeça, a lição da paciente. Cinco anos no futuro, agora recém formado, o jovem médico ainda às vezes briga com os familiares, com os amigos, com coisas pequenas. Mas não esquece de dona Orminda, e de tantas outras histórias que escutou. Tenta com cada ano, cada dia de pratica brigar menos pelas coisas bobas, e mais pelas que valem a pena. Para que possa sempre crescer, como médico, como pessoa, no contato com o outro.

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