- A consulta é para quem primeiro?
- Ai doutor não sei, porque a Luiza está impossível. Ela corre, ela fala o tempo inteiro, ela fica me seguindo pela casa quando tento fazer minhas coisas, está brigando com colegas na escola, não avança no ensino, tá impossível! e aí eu grito com ela mas me sinto culpada, mas eu perco o controle e grito porque ela tá muito agitada
Frente a enxurrada de palavras, o médico tem uma ideia
- Vamos começar por você Letícia? O que está acontecendo com você?
Vem como resposta uma história de meses de mudanças de humor, choro, gritos com a filha, falta de apetite. Nega qualquer evento traumático na vida, a família está viva, o ex-marido já separou-se há anos. A filha, admite, já era mais agitada antes que começasse a perder a paciência. Usa anticoncepcional, e menstruava no intervalo da pílula, mas há seis meses o fluxo não desceu.
- Será que já estou na menopausa? E olha, tem quase um mês que não vou ao banheiro doutor! Tem alguma coisa errada com a barriga
Ainda com o raciocínio fragmentado, o médico decide por examiná-la... E encontra uma massa de quase trinta centímetros no abdome de Letícia. Chama o supervisor pra discutir o caso. Pensam em internação, em fezes ressecadas. Mas o formato da massa parece estranho para constipação, e tão típico de um útero. Coloca-se um sonar sobre a barriga. E tem um coração pequeno batendo a 140 por minuto ali dentro. Letícia se desespera ainda deitada na maca.
- Não! Não pode ser! eu já engravidei antes! Não é assim! Mas eu uso anticoncepcional!
O supervisor retirar a criança da sala e volta para conversarmos. Letícia é só choro.
- Eu vou ter que arrancar esse bebê! Não dá! Não posso ter ele! Não tenho condições, não tenho dinheiro, eu já não consigo nem criar minha filha sozinha, imagina dois! Não, vou tirar ele! Tem certeza que não são fezes?
Uma hora de conversa depois, Letícia sai. Os médicos repetem a exaustão que, dado o tamanho do útero, qualquer tentativa de aborto representa enorme risco de vida para ela mesma. Leva um pedido de ultrassom para que veja com os próprios olhos (não bastou os ouvidos) que há ali um bebê, e não só fezes retidas. Leva também ideias de tentar tira-lo de lá.
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Uma semana depois Letícia volta com o ultrassom. Não trouxe a filha desta vez. Entra na sala com o mesmo batom vermelho forte, mas a maquiagem dos olhos já vem borrada de algum choro anterior.
- E como foi o exame?
- Tá la dentro mesmo. Igual vocês falaram. A médica disse que tem 7 pra 8 meses. Eu ainda não entendo. Como, se eu tomava pílula?
- Nenhum método é cem por cento, conversamos isso na última consulta né Letícia. Mas como você está agora?
- Eu continuo desesperada! Não posso ter esse filho doutor! Você não entende, eu sinto que vou fazer uma loucura. Um dia peguei uma facada e estava com ela na barriga, pronta pra tentar arrancar ele de lá eu mesma.
Silêncio no consultório, os ombros do jovem médico tensos, a respiração quase que suspensa no ar.
- E o que te fez parar Letícia?
- E o que te fez parar Letícia?
Em resposta, a mulher de 42 anos chora. Soluça forte, alto, e deixa escorrer pelo rosto muitas lágrimas. Quando se acalma, responde:
- Esse bebê não é culpado da pílula não funcionar, nem de eu não quere-lo! Ele não merece isso. Eu quero que ele seja feliz! De verdade! Mas eu não posso! Quero que ele tenha uma mãe que o ame! Mas não pode ser eu. Não to conseguindo nem ser boa mãe para Luiza, imagina pra ele. Merece uma família que lhe dê carinho e amor. E não pode ser eu e aí talvez seja melhor ele não viver mesmo... tem certeza que não dá para tira-lo? Fazer uma cirurgia?
O jovem médico, que não lembra em todos seus anos de estudo ter sido preparado para lidar com isso, propõe:
- Letícia se concentra nessa vontade que você tem de vê-lo feliz e pensa, ele já está quase no fim da gravidez. Usa essa desejo de vê-lo bem e vamos esperá-lo nascer. Depois ele pode ir pra adoção. E recém nascidos costumam ser adotados muito mais rápido.
Enquanto Letícia recua no silêncio de um novo choro, agora contido, o médico pede licença para buscar o supervisor, a residente mais velha, e discutir os pormenores. Um pedido de orientação é encaminhado para a assistência social da região. Voltando a sala com o supervisor, Letícia está mais calma. Concorda com o plano. Enquanto termina-se de solicitar exames de pré-natal e a consulta está para acabar, a paciente ainda pergunta
- Você acredita que ele vai mesmo conseguir uma família? Não quero meu fi... não quero essa criança jogada num orfanato, sem amor? Quero que ela receba amor, só que não posso...
- Acho que é o melhor que podemos fazer por ele - diz o profissional, mais inseguro do que gostaria, sem conhecer nada do sistema de adoção brasileiro ou do destino dos que pra lá vão.
Letícia, algo triste e cabisbaixa, sai da sala. Escondido na carteira, leva o cartão de pré-natal que toda gestante têm.
Letícia, algo triste e cabisbaixa, sai da sala. Escondido na carteira, leva o cartão de pré-natal que toda gestante têm.
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