sexta-feira, 7 de abril de 2017

Sobre acreditar

Entra, 52 anos, com a caminhada lenta e segurando a bolsa com as duas mãos a paciente Amanda.
"Doutor, tem alguma coisa ruim na minha barriga! O senhor precisa descobrir o que é"
Respiro e começo a entrevista. Pacientes com ideias fixadas em algumas doenças são com freqüência difícil de abordar.
"Sente dor?" "Vai no banheiro de quanto em quanto tempo?" "Como são as fezes?" "E a alimentação?"
Amanda descreve viver a base de macarrão, arroz e feijão. Sem verduras, sem legumes. Pouca carne por conta da crise - e das reportagens da tevê.
"Mas não podem ser só gases doutor! Tem alguma coisa aqui"
"Tem algum familiar que tenha casos de câncer dona Amanda? Algum colega próximo que sofreu disso?"
Amanda silencia. "O senhor é evangélico doutor?"
"Acredito em Deus dona Amanda" escapo pela tangente. O confronto não beneficiaria o atendimento.
"É que uma irmã da igreja falou comigo, durante o culto. Uma falou e a outra traduziu e disse que Jesus disse 'procure um médico da terra'"
"Entendi Amanda. A gente vai te examinar"
No exame físico, o coração bate diferente. Perguntas rápidas revelam que Amanda tem falta de ar quando sobe escadas. Edema nas pernas. Já desconfiava disso, mas não sabe direito tomar todos os remédios (ela me conta, e o prontuário confirma, que são quatro), e os filhos não auxiliam.
"É que não sei ler a receita, não tenho estudo. Mas eles não leem pra mim, acham minha doença é invenção. Já pedi pra outra médica até mandar carta pra eles, mas eles não acreditam. Não vem aqui na consulta"
Registro a informação, pensativo, e volto ao exame.
"O abdome da senhora está normal dona Amanda. Me parece que realmente são gases. Por enquanto a gente tenta alguns remédios, o mais importante é mudar a dieta. Também precisamos rever as receitas do coração pra entender melhor. A gente reavalia em quinze dias, que tal?"
"Mas nem ultrassom doutor?"
"Não precisa"
Amanda rejeita a idéia com força "O doutor está dizendo que o meu Deus é falso? Ele me falou! Falou que havia alguma coisa, que eu precisava vir ao médico!"
Silêncio. Respiro, e tento novamente a tangente "O Deus da senhora não é falso dona Amanda. E eu acredito que se a senhora sente, tem alguma coisa na sua barriga. Mas na medicina a gente dá um passo de cada vez, primeiro tentamos o mais simples, não tem sinal de gravidade" lembrando do sermão de um amigo querido que uma vez ouvi, ainda complemento "Os planos de Deus para nós não são os planos que nós temos pra nós mesmos. As vezes é parte do plano dele esperar. E a gente vai te reavaliar. O que a senhora acha? Ou a senhora queria muito o ultrassom?"
Amanda abaixa a cabeça, não sei se pensativa ou se resignada. Mas logo responde:
"Queria mesmo é que meus filhos acreditassem em mim"

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