sexta-feira, 14 de abril de 2017

Aniversário

Oncológico Infantil. Maria com seu filho Arthur de 9 anos discutem o futuro tratamento do menino. Para ajudar os acadêmicos que não conhecem a história, a professora relata rapidamente o caso.
Na educação física Arthur caiu, um tombo bobo, ralou só o joelho...
e quebrou a perna em três lugares. 
Criança não quebra a perna fácil. O pediatra logo encaminha pra onco, diagnóstico: Leucemia.
A primeira quimioterapia não funciona, e refazem os exames e o diagnóstico. Tumor raro, nome difícil de pronunciar.
Momento atual.
"Como falei, vamos iniciar agora outro tipo de quimioterapia, apropriado. Mas olha, já atrasamos muito por causa da cirurgia de semana passada. Quero começar próxima quinta, ok?"
"Claro, vamos começar o mais rápido para resolver isso logo, né meu querido?" responde a mãe rindo, e abraçando o filho carinhosa.
"Quinta dia 11, certo?"
"Não, onze não!" brada Arthur em réplica "É seu aniversário mãe"
"Larga de ser bobo menino" replica a mãe, com novo riso bem humorado "to ficando velha, nem gosto de comemorar. E a gente tem que te tratar logo"
"Não mãe! É sua festa, não quero ficar no hospital"
Mãe e filho trocam olhares. Maria protesta baixinho, a voz engasgando, o riso quase virando choro "larga de ser bobo..."
A médica interrompe prontamente "Ora, quando digo que não pode atrasar é uma semana, duas. Mas um dia não tem problema né? Ainda mais aniversário dessa mãezona. Vou combinar com o hospital, a gente interna o Arthur na sexta 12, tudo bem?"
Arthur olha rindo para a oncopediatra, e acena um ok. A mãe também acena com a cabeça, sorrindo. Preenchido as receitas e explicado os detalhes, mãe e filho saem do consultório discutindo os salgadinhos da festa. O acadêmico que acompanha o atendimento segura o choro. Quando chega em casa, lida com as emoções como sabe: escreve.

Aprendi com meu pai

Chega Hilmara, 53 anos com uma blusa florida e um sorriso aberto, e um coque de cabelos grisalhos bem repuxado e sério. Vem porque a glicose estava alta.
- Já foi duas vezes. Mas eu não senti nada, fui medir por que minha irmã tem Diabetes
A médica mais velha, procurando ensinar ao mais novo os caminhos de uma consulta centrada na pessoa, investiga
- E como a senhora lida com essa ideia da Diabetes, dona Hilmara?
- Ah pra mim tudo bem. A vida é assim mesmo. Se eu tiver, vou tratar!
- É, a senhora não fica preocupada? Entende que vai ser um tratamento diário?
- Olha, tem coisas que Deus decide. Se eu tiver, trato. Tive que terminar com meu marido porque ele tava me traindo veja só, ai fui fazer os exames do HIV. A Sífilis não tinha, Hepatite não tinha, mas antes de entregar o do HIV a enfermeira perguntou "e se a senhora tiver a doença, como vai ser?" Falei "Vou tratar ué. Não tem outra coisa"
Tranquilizados, seguimos a consulta. A consulta prossegue. Uma glicemia capilar de quase 300, junto com outra de sangue que ela fez com a irmã confirmam o diagnóstico. Explicamos a dona Hilmara, que escuta e diz que irá tratar, podemos ter certeza!
No processo de fazer a receita e preencher os prontuários, fica um silêncio, que ela logo preenche
- Desde o primeiro dia que a glicose deu alta eu já cortei refrigerante e o chocolate que eu gosto, sabe? Não bebi uma gota, nem no cachorro-quente da igreja, todo mundo bebendo! É que aprendi com meu pai, ele era assim sabe? Falava "Ou cê faz uma coisa até o fim, ou melhor nem começar!" e a gente fazia né.
Mais um pequeno silêncio, e logo emenda
- Até porque, se a gente não fizesse era chinelo na certa!

domingo, 9 de abril de 2017

Forró Devagarinho

Dona Maria entra com 62 anos, rugas e manchas de sol, e um sorriso simpático. Vem porque os eosinófilos, um tipo de células branca, subiram muito. Conta que sempre foi alérgica, passou a vida com asma, até que um dia a medula passou dos limites. Os eosinófilos atacaram coração, nervos da perna, pulmão. "Mas agora To controlada" diz, encerrando sua história.
Enquanto os acadêmicos anotam o prontuário, Maria suspira e comenta:
"Queria ser uma dessas velhinhas das pernas boas, dançante, mas aí vem as doenças e puxa o tapete da gente."
"Então a senhora gostava de dançar?"
"Gostava" confirma Dona Maria "Dançar aquele forró arrasta pé era bom demais! Não danço mais porque os nervos das pernas não deixam mais né."
"E será que não dá pra dançar de levinho?" sugere o acadêmico em ato reflexo, desejoso de estimular a alegria da paciente.
Dona Maria ri um riso de criança sapeca, e abaixa a voz, como revelando um segredo "de levinho danço! Na formatura da minha filha ela me puxou pra dançar, dois passos pra cá e pra lá."
"Devagarinho né?"
"Exatamente! Falei com ela, só não pode rodopiar, tem que ficar só nos dois passos, devagarinho!"

Só quero que tire tudo

Os acadêmicos do hospital vão até o leito 11 conhecer o caso. Selma, 42 anos, internada na ginecologia para retirada da mama. Magrinha, do sorriso amarelo, de pele cobreada e cabelos curtos, Selma conta com palavras diretas:
- É, eu descobri num exame de rotina né. Aí já falei com médico que podia tirar logo. Mas eles enfiaram um fio, tiraram a biópsia. Aí depois decidiram tirar só um pedaço né, pra deixar o peito. Só que aí agora recebi o resultado do pedaço, e tinha mais câncer. Então vou tirar o resto.
- Vai tirar a mama inteira então dona Selma? 
- Isso, agora sai tudo
- E vai reconstruir?
- Ah eu falei com médico. Só quero que tire tudo logo! O importante é tá bem, tenho três filhos pra cuidar, depois eu penso nisso.
O professor intervém e explica: Foi discutido com ela que poderíamos fazer só a mastectomia simples, ou poderíamos já fazer a cirurgia com a plástica, numa abordagem reconstrutora, que envolveria colocar prótese. Seria necessário protése também na mama contralateral, para deixar simétrica. A outra opção é uma reconstrução posterior, após a recuperação da primeira cirurgia.
Acenando em concordância com o professor, nossa paciente torna a dizer:
- É mas eu só quero que acabe com isso logo. O peito a gente resolve depois
Uma das acadêmicas, curiosa, acaba por questionar:
- E o marido Dona Selma?
A mulher é categórica: - Acabou de sair dum infarto, não tá podendo ter essas atividades lá em casa não! Até porque com meu peito preocupo eu

sexta-feira, 7 de abril de 2017

Sobre acreditar

Entra, 52 anos, com a caminhada lenta e segurando a bolsa com as duas mãos a paciente Amanda.
"Doutor, tem alguma coisa ruim na minha barriga! O senhor precisa descobrir o que é"
Respiro e começo a entrevista. Pacientes com ideias fixadas em algumas doenças são com freqüência difícil de abordar.
"Sente dor?" "Vai no banheiro de quanto em quanto tempo?" "Como são as fezes?" "E a alimentação?"
Amanda descreve viver a base de macarrão, arroz e feijão. Sem verduras, sem legumes. Pouca carne por conta da crise - e das reportagens da tevê.
"Mas não podem ser só gases doutor! Tem alguma coisa aqui"
"Tem algum familiar que tenha casos de câncer dona Amanda? Algum colega próximo que sofreu disso?"
Amanda silencia. "O senhor é evangélico doutor?"
"Acredito em Deus dona Amanda" escapo pela tangente. O confronto não beneficiaria o atendimento.
"É que uma irmã da igreja falou comigo, durante o culto. Uma falou e a outra traduziu e disse que Jesus disse 'procure um médico da terra'"
"Entendi Amanda. A gente vai te examinar"
No exame físico, o coração bate diferente. Perguntas rápidas revelam que Amanda tem falta de ar quando sobe escadas. Edema nas pernas. Já desconfiava disso, mas não sabe direito tomar todos os remédios (ela me conta, e o prontuário confirma, que são quatro), e os filhos não auxiliam.
"É que não sei ler a receita, não tenho estudo. Mas eles não leem pra mim, acham minha doença é invenção. Já pedi pra outra médica até mandar carta pra eles, mas eles não acreditam. Não vem aqui na consulta"
Registro a informação, pensativo, e volto ao exame.
"O abdome da senhora está normal dona Amanda. Me parece que realmente são gases. Por enquanto a gente tenta alguns remédios, o mais importante é mudar a dieta. Também precisamos rever as receitas do coração pra entender melhor. A gente reavalia em quinze dias, que tal?"
"Mas nem ultrassom doutor?"
"Não precisa"
Amanda rejeita a idéia com força "O doutor está dizendo que o meu Deus é falso? Ele me falou! Falou que havia alguma coisa, que eu precisava vir ao médico!"
Silêncio. Respiro, e tento novamente a tangente "O Deus da senhora não é falso dona Amanda. E eu acredito que se a senhora sente, tem alguma coisa na sua barriga. Mas na medicina a gente dá um passo de cada vez, primeiro tentamos o mais simples, não tem sinal de gravidade" lembrando do sermão de um amigo querido que uma vez ouvi, ainda complemento "Os planos de Deus para nós não são os planos que nós temos pra nós mesmos. As vezes é parte do plano dele esperar. E a gente vai te reavaliar. O que a senhora acha? Ou a senhora queria muito o ultrassom?"
Amanda abaixa a cabeça, não sei se pensativa ou se resignada. Mas logo responde:
"Queria mesmo é que meus filhos acreditassem em mim"