quarta-feira, 8 de março de 2017

Mais anos que você de vida

Dona Emerilda, 66 anos, entra na sala do pronto socorro já anunciando seu diagnostico.
- É que tenho DPOC doutor, e ontem começou tosse forte com secreção purulenta e dispnéia
Surpreso pelo vocabulário técnico, não resisto a confirmar coloquialmente - então a senhora está com catarro amarelado e falta de ar?
- Isso mesmo. É uma crise da DPOC.
Penso o mesmo que dona Emerilda, mas não falo. A consulta continua com história e exame compatível com DPOC exacerbada.
No fim explico que precisaremos de um raio-X, oxigênio e medicamentos na veia. Decido acompanhar dona Emerilda pelos corredores do pronto atendimento, já que é a primeira paciente que irei internar. No caminho, uma funcionaria a cumprimenta e elas papeiam.
- Trabalhou comigo lá na Santa Casa, gente boníssima - explica Emerilda ao final.
- Então a senhora já trabalhou em hospital?
- Ih, foram 29 anos, 2 meses e 4 dias. Quantos você tem meu filho?
- 24 anos - Sorrio com a vergonha de uma criança descoberta brincando de ser adulto.
- Mais anos que você tem de vida! Mas no final tive de pedir demissão. Meu filho morreu de acidente de moto, e não conseguia mais trabalhar vendo gente internada. Não quiseram me aposentar, aí pedi pra sair.
Me vem assim, junto ao entendimento do vocabulário técnico, a certeza de que pacientes são narrativas complexas, sempre maiores que suas doenças; mesmo no atendimento corrido de um pronto socorro.

Conselhos de Rebolado

Entrou com apoio da filha, carregando o peso de mais de nove décadas. Segundo a filha, vinha para saber dos rins, mas dona Alzira, risonha, parecia mais interessada em contar histórias.
Trazia todos os exames de rotina, e a filha anunciou que a diabetes ia bem (três dias antes haviam passado na endocrinologista). Já o braço doía, quebrado pela terceira vez por cair da cama. "Mas tudo bem, já to acostumada, já me aconteceu muita coisa minha filha" falava Alzira para a acadêmica que a atendia "quando ainda nem era grávida dessa daqui viajei a cavalo para a cidade, no caminho a gente teve que dormir no relento e uma caixa caiu e quebrou meu dedo..."
"Mãe não é isso que ela perguntou! O braço já tá quase recuperado, a gente tá acompanhando direitinho com o Reumatologista. Ela quebra fácil porque têm osteoporose."
Continua por um tempo a entrevista,  numa danca de histórias interrompidas por respostas objetivas da filha. Ouvimos do marido que morreu mas não sabemos como, ouvimos da vez que a filha nasceu (parto em casa) mas não conclui-se o conto. Entre a impaciência da filha e as "necessidades" objetivas do atendimento, coletamos trechos de dona Alzira.
Para o grand finale, a contadora de histórias pega na mão da acadêmica ao fim da consulta e pergunta
"Tem marido minha pequena?"
"Não, estou solteira dona Alzira"
Em tom pausado, como quem conta lembrando, ela aconselha: "Olha, não tenha medo de arranjar marido não. Não fica com medo do rebolado não!" Pausa com risos. "To há quarentas anos sem rebolado porque o marido morreu, e faz falta viu...
Mas arranja um marido bom, que ai o rebolado é bom, e tudo é bom!"
A filha, meio corada de vergonha, começa a arrastar para fora do consultório a mãe, que, sem se calar, repete algumas vezes: o rebolado é bom, não foge não!

sexta-feira, 3 de março de 2017

O creme

  Entrou com 75 anos e um sorriso simpático. Tinha poucas rugas no rosto, e muita pele nos braços magros. Perguntei o que a trazia pra atendimento, e me falou que era só ver exame.
    "E também não tenho dormido muito bem..." deixa escapar de ultima hora. Começo, passo a passo, a perguntar do sono, da ansiedade, da vida. Diz que chora as vezes, que acorda e fica deitada pensando no marido e nos irmãos que já se foram. Fala que a vizinha toma um remédio pra dormir que experimentou e deu certo. Logo me alarmo.
    Os "zepams" da vida, usado por muitas pessoas com problemas de sono, são grandes vilões disfarçados. Nublam a mente, diminuem os sentimentos, e quando se usa por muito tempo, começam a apagar a memória em uma demência causada por remédio. Muita gente usa. Muita gente adora cair na paralisia pacífica da droga.
   "Dona Marilda, vou conversar com o médico, mas acho que podemos pensar em um fitoterápico, talvez um remédio para depressão leve que vá ajudar no sono de outro jeito" falo, já tentando evitar a armadilha de ceder ao uso de Clonazepam para insônia.
   "E a senhora sente algo mais?"
   A paciente hesita, e aguardo.
   "Queria um creme também doutor. To muito ressecada"
   "A pele, Dona Marilda?"
   "Não não" e ri sem graça "para ter relação. É que como to muito sozinha procurei sabe, aí conheci um moço... mas doeu muito..."
   Rio por dentro, tentando não rir por fora. Rio não de Dona Marilda, aos 75, querendo um creme para manter a vida sexual bem funcionante, isso é na verdade lindo. Rio por alivio, Dona Marilda já sozinha encontrando caminhos para fora de sua possível depressão, vivendo a vida, conhecendo um moço novo. Rio porque ao invés de um Zepam, trataremos de Marilda com creme vaginal, quiça o bom e conhecido KY.

Dor nas costas

Senhora de 52 anos, vem ao ambulatório de nefrologia por causa da pressão alta. Anda devagar, cabeça baixa, carregando um casaco de crochê que lembra aqueles de vó.
É um caso simples. Conta que mede a pressão no posto, e vai bem. Perguntamos de outras queixas, mas a princípio não existem. Tudo parece incrivelmente simples. Em silêncio penso que apenas teremos de renovar a receita. Mas ao fim da consulta médica, aprendemos, deve sempre haver uma última estruturada e curiosa pergunta:
- Existe alguma coisa que não perguntamos e a senhora deseje falar?
- Não, nada não... *a paciente hesita, e percebendo, aguardamos* Bem, tem a dor nas costas, mas isso é antigo, e por causa da filha né
- Por causa da filha? - incitamos a senhora a continuar
- É, minha filha é paralítica desde criança e faz hemodiálise. Ela já tá com 17 anos e tá pesada, e como eu que ajudo no banho, que boto e tiro ela da cadeira, as costas doem né...
Nós acadêmicos ficamos um momento sem resposta. Uma simples pergunta, e descortina-se uma dor nas costas já velha amiga, que por pouco a paciente não esquece de falar. Do tipo que não basta renovar a receita para (tentar) tratar.

O rei caminhoneiro


Tem já quase setenta, vem pra acompanhamento da pressão alta. Quando pergunto como passa desde a última consulta, começa com a voz meio arrastada, meio timidez:
 - Ah, doutor, olha eu vou contar a verdade né - olha em volta - desde domingo to sentindo uma dor aqui *e aponta a parte baixa da barriga* e nos testículos. Mas vou falar a verdade, to há cinco anos que o amigo de baixo já é defunto...
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Mais tarde, examinando o senhor, diagnosticamos uma provável Orquite. O preceptor, embora não haja nenhum sintoma para desconfiar da doença, decide por perguntar:
- E gonorréia, já teve?
- Doutor, eu fui caminhoneiro. No Rio de Janeiro era conhecido como Rei da Gonorréia.
Rimos com o paciente. Em minha cabeça, me lembro do romance Menino de Engenho, e de que essa doença sexualmente transmissível já foi vista por muitos como atestado de virilidade. Nosso paciente é homem do mundo e, não duvido, tem certo orgulho do título. No fim, somos orientados a receitar remédio para os dois, gonorréia e orquite. Só por segurança.

Usar Biquini

A mãe termina de despir a filha, 1 mês de vida. Olhos arregalados, a barriga proeminente (todo bebê tem barriguinha proeminente) coberta por uma faixa no umbigo. O professor tira a faixa 
"Olha, o umbigo já secou, isso daqui não precisa não"
"É porque ainda tá pra fora, tá muito alto o umbigo dela doutor!" justifica a mãe sem tirar os olhos da filha, vigiando as mãos do médico.
"É, mas a faixa não vai ajudar. O umbigo volta pra dentro sozinho no seu tempo. Pode deixar que ela vai virar uma menina bonita..."
"Vai ficar pra dentro então sem fazer nada?"
"Vai, vai sim. Tem gente que põe moeda, faz simpatia, mas é só esperar que o umbigo entra. Vai crescer bonita e poder usar biquini"
Os pais riem, satisfeitos. Muito ainda pode acontecer no futuro daquela filhinha, mas o umbigo não será um problema.

Boca de Cão

70 e alguns anos, já meio careca, o corpo bem emagrecido da Diabetes que carrega há mais de 20. Vem com a irmã. Tem a fala desorientada, de quem começa a se perder na própria cabeça, e repete algumas vezes que cresceu na roça. Pergunto dos remédios que toma.
- A insulina dotô. O outro não tomava, ai agora tomo insulina. Queria parar de tomar mas não tem cura né *aceno em concordância* Não tem cura não. Essa boba aí acha que tem, pagou 200 R$ praqueles boca de cão fica gritando lá em casa.
A irmã reage - Não fala assim do pastor.
- Falo mesmo! Sai gritando c'ocê vai levantar e ficar curado. Vai nada sô! Só quem cura de verdade é Deus. Esses daí, tudo boca de cão!

Mentiras

Tinha 72 anos, os cabelos tingidos já começando a crescer brancos, e um leve sotaque português. "Eu tenho esquecido muito" relata, e discorre sobre como se perdeu no bairro, já não sabia dizer ao taxista aonde morava.
Preocupados, os acadêmicos decidem por aplicar um questionário sobre as capacidades mentais. Para tal, para melhor conhece-la, perguntamos da escola: "Ah, quando mamãe morreu eu tinha 8 anos, e tive de parar o estudo no segundo ano. Tentei seguir a noite, porque trabalhava, mas não deu. Mas olha, fora daqui eu minto, falo que cheguei até a quinta série."
Entre as avaliações do questionário mini-mental, pedimos que ela escreva no papel uma frase de autoria própria.
"Eu vou escrever uma coisa aqui, mas é mentira, tá?"
No papel que recebo de volta, letras meio tremidas, a frase: Eu sou feliz.