Entra Vivi, 13 anos, tímida atrás da mãe Viviane. É mais alta que a mãe, mas o jeito de prender os cabelos crespos em dois rabinhos laterais e o sorriso tímido com os olhos abaixado parecem gritar que é, ainda, criança.
- Eu trouxe ela doutor porque tem um ano que ela já virou mulher e ela ainda não foi examinada por um ginecologista
- Virou mulher?
- É, desceu o sangue
- E como tem sido isso para você Vivi?
A jovem paciente franze o rosto olhando pra mãe. Sem apoio da mais velha, que mantém o olhar firme, volta para o médico e sussurra "normal."
- Viviane, será que posso conversar um pouco sozinho com sua filha?
- Claro doutor, aí ela fala e você examina ela e conversa com ela de usar camisinha que eu já falei mas ela tem que ouvir do doutor
O médico ri um pouco. Já atendeu a mãe, Viviane, diversas vezes, sempre de uma franqueza ríspida. Agora, sem hesitação, deixa a filha sozinha e sai do consultório. A jovem, que não puxou a mãe, olha pra baixo.
- Vou repetir Vivi, como tem sido pra você menstruar?
- Normal - sussurra mais uma vez, ma aí levanta o olhar pro médico, e fala - eu já tinha umas amigas que menstruavam e me ensinaram a usar absorvente
- É? E com a mãe, falou?
- Ah não gosto de conversar essas coisas com ela não, ela fala fala mas acho nada a ver
- Ela deve ter algumas preocupações né. E você tem cólica?
- Só fraquinha, eu tomo Dipirona e passa
- Tá certo. E dura muitos dias?
- Três dias
- Ok. E me diz, você já teve sua primeira relação também Vivi?
- Não, ainda não - hesita a adolescente, voltando a olhar pro chão
- Já teve vontade?
- Não
- Bom então tudo bem. Quando quiser ter, é importante lembrar da camisinha, que previne doenças, e você pode também pedir uma consulta para usar anticoncepcional para evitar engravidar tudo bem? Não precisa nem vir com a mãe
- É, a professora falou - Diz levantando o rosto animada
- Falou?
- É lá na escola a gente teve um dia de corpo humano e ela falou disso, das doenças, de um monte de coisa
- Que bom! - fala o médico enquanto pensa, satisfeito, que a mensagem foi transmitida - Antes que me esquece, é importante que você respeite você mesma certo Vivi? É importante saber que não está com vontade e não ser pressionada pelos outros, pelas colegas
A paciente ri nervosa e volta de novo os olhos pro chão. Mas responde: - A professora falou também disso. Já teve amiga que fez, mas eu não quero mesmo não.
O médico está satisfeito. A paciente diz não ter dúvidas. Eles chamam de volta a mãe, e o médico repassa rapidamente que a paciente não precisa ser examinada se não tem queixas, que as orientações foram ofertadas, e que podem sempre voltar caso algo aconteça. Elas vão satisfeitas, e ele fica pra trás pensativo. Feliz de saber que em tempos de tentar controlar o que se fala na sala de aula, as informações que são importantes para essa - e outros tantos - jovem chegou nos ouvidos.
Histórias e ensinamentos dos encontros que se dão em um consultório por aí... *os nomes e dados dos pacientes aqui apresentados são fictícios em prol de sua preservação
sexta-feira, 9 de novembro de 2018
quinta-feira, 16 de agosto de 2018
A casca grossa (ou "eu tiro de letra")
Entra Rosa, 63 anos, o corpo de senhora num vestido justo e bem passado, o sorriso de dentes brancos emoldurados na pele negra; olhos como os de Capitu, oblíqua. Nos abraçamos fortes.
- Ah doutor, quanto tempo
- É que estava de férias Rosa
- Ah mas que bom que voltou
- Tava bom onde eu estava também, mas é bom estar de volta - Sorrimos um pro outro - Mas bem, como posso lhe ajudar hoje?
- Ah doutor eu venho sentindo uma dor na barriga...
- E também vem um formigamento que passa aqui pelo peito, pelo pescoço...
- E essa mão aqui quando eu to lavando água na pia, mas só quando tá muito frio, fica meio inchada...
Respiro. Tenho mais consultas só com Rosa do que algumas famílias de pacientes. Em muitas, explorei queixa a queixa. Em outras, prescrevi remédios sem fazer-lhe um exame físico. Me lembro de pelo menos duas vezes onde tentei outro ângulo:
"Rosa, investigamos seu corpo todo e não vi nada. Como está o coração?" "Ué se o senhor diz que bem, está bem"
"Rosa, mais uma vez fico pensando se o seu corpo não tá falando de algum sofrimento?" "É nada doutor. Lá em casa tá tudo bem, vou até fazer uma festa para família"
Em algum momento parei de tentar. E aí, sem que fossem feitas perguntas diretas, mas através dos muitas consultas de Rosa fui descobrindo: Dos filhos, um deles até hoje mora com ela, desempregado, tendo comida e roupa lavada da mãe. Dos netos, pelo menos três ela cria, e chama de filhos pela responsabilidade que há anos assume. Dos pais e irmãos, estão na Bahia - aliás com orgulho ela conta que sua mãe celebra em breve 100 anos.
Hoje por acaso dona Rosa conta do marido:
- Mas eu insisto tanto pra ele vir doutor. A barriga dele ta virando uma bola. E ele bebe o dia inteiro e não vem ao médico. Fica na oficina, bebe o dia todo, chega sujo em casa e quer me procurar que nem mulher! Mas ele não vem...
- Então o marido bebe todo dia dona Rosa?
- Todo dia, a mesmíssima coisa.
- Deve ser difícil viver com um marido assim? - Digo, na nova(velha) tentativa de encontrar o ponto chave de Rosa
- Ah não meu querido, isso eu tiro de letra! Eu dou uns safanões nele, boto ele pra dormir no sofá
- E já pensou em terminar com ele?
- Ih, já foi uma vida toda, não vale a pena não. Além do quê, eu tiro de letra!
Respiro de novo. Mais algumas perguntas e estamos discutindo de novo os formigamentos. E enquanto escrevo algumas medicações que acho pouquíssimo provável de funcionarem pra Rosa, fico pensando se há alguma forma de vencer essa casca grossa.
segunda-feira, 28 de maio de 2018
Visita Domiciliar
Pipas voavam por todos os lados nesse dia de céu azul
Era o tempo delas
Suas crianças e suas rabiolas, dançando no aterro do lado do mar, sem querer se punham a nos [cortejar!
Na passada já certa
até as primeiras vielas
daquele meu lugar de cuidar
Queria ser um pouco pipa
Mirar de cima a confusão de casas que se constituía aquela Comunidade que
sendo vertical, era Morro
pela história afro-brasileira, era Dendê
E por fim, como a parte que me cabe era trecho desse terreno todo, um trecho bem ali no fim da ilha, de onde se via toda aberta a Guanabara baia, era, óbvio, Boa Vista
Mas humano que sou subi seus becos a pé...
Embrenhei-me por sua tuberculosa umidade
Suas casas sem reboco
sempre me pareciam esboço
da própria arquitetura da existencialidade;
Bem,
viro uma esquina e me vem apertada saudade
passando lá pelo beco da Espada
não há mais Luz* e sua esparramada felicidade
Fumando maconha toda relaxada
Nas casas que entro procuro me fazer atento
À mais do que o paciente me fala,
mas como vive, se organiza,
como é sua casa
"E que história é essa de ficar no quarto dos fundos, sem janela, mofo no teto, tudo fechado?"
"É que as vezes tem tiro na rua doutor, e no quarto da frente, com janela e brisa, fico muito assustado"
As vezes volto tão exausto que sou eu no fim do dia querendo um alento
Ah... Ser pipa solta no vento. Leve, leve (n)este momento.
Na volta, a vista que de fato é boa sempre me alivia
me inspira e meio que me recria
Ou quem o faz é dona Creuza*
que sempre encontro com a barriga ascítica e um vestido de deusa
E seus comentários tão cheios de vida
mesmo pra quem bebe uma dor, que pelas filhas admitidas,
é de um amor que nunca fechou as feridas
Termina a descida
e as vezes o céu contra-poente
em acerto com o mar logo ali na frente
Me dá uma paz colorida
… as vezes o peso da mente
Nubla tanto a vista da gente
Que só penso na dona Agradecida*
(enclausurada em sua casa, esquecida)
Chego à Clínica, e é o fim da Visita.
terça-feira, 6 de fevereiro de 2018
O vento te chama
Dia de visita domiciliar. A médica supervisora, Ana, tem algumas semanas que fala da paciente Luz, 59 anos. Que vem sentindo um necessidade de vê-la e estar com ela. Luz tem um câncer de colo do útero avançado, diagnosticado na clínica da família, e agora é acompanhada num hospital de referência. Mas como boa equipe de saúde da família, a supervisora e seus residentes, a enfermeira e os agentes de saúde mantém o acompanhamento e o vínculo. Exceto que a greve nos impediu de subir para ver a paciente por três meses, e ela, cada vez mais fraca, não desceu as escadas de seu morro pra chegar a Clínica, no aterro perto do mar.
Quando subimos as escadas e viramos a esquina do beco onde mora Luz, ela está do lado de fora sentada numa almofadinha olhando pro horizonte distante. Seu corpo negro emagrecido logo se levanta e seu rosto já encovado abre um sorriso.
- Doutora! Minha querida doutora! Eu sabia que a senhora vinha! Ficava aqui só te esperandoQuando subimos as escadas e viramos a esquina do beco onde mora Luz, ela está do lado de fora sentada numa almofadinha olhando pro horizonte distante. Seu corpo negro emagrecido logo se levanta e seu rosto já encovado abre um sorriso.
- Eu queria tanto ter vindo logo Luz, mas teve greve, teve tanta coisa. Só que hoje eu já não aguentei mais esperar
- To tão feliz que você veio Ana! Minha doutora! - as duas se abraçam apertado. Luz também cumprimenta o jovem médico e o estudante que acompanham a supervisora - venha, vamos entrar
Dentro da casa, Luz conta que agora controla a dor com uso direto da Morfina, remédios mais fracos já não tem efeito. Conta que interrompeu a quimio devido aos efeitos colaterais, que agora faz radioterapia para reduzir a massa principal, mas que uma tomografia revelou metástases do câncer infiltradas por seus ossos e corpos. Enquanto conta os detalhes, a voz de Luz quebra um pouco, e vem com lágrimas:- Eu não imaginei que seria tão lento... E eu queria tanto viver. Tem sido tão difícil Ana! O meu sorriso... eu não consigo mais sorrir inteira, é um sorriso mais ou menos sabe?
A médica supervisora senta-se ao lado da paciente, a abraça forte e assim, escutando e ninando a outra, começa também a chorar.
...
Um tempo se passa. Informações médicas são colhidas, tempo de radioterapia, medicações atuais para dor e para as feridas, acesso a Riocard e auxílio alimentar (este último não há, logo registramos que será preciso buscar uma assistente social), rede de apoio, entre outras. Na despedida, as duas mulheres de espírito forte voltam a dialogar como amigas.
- Eu to tão feliz que você veio!
- Eu senti você me chamando. Há tanto tempo que só tinha você na minha cabeça
- Ah eu chamei sim, chamei muito Ana. Falei com Deus e com os orixás
- Chegou em mim! E se precisar Luz, me chama de novo. Pede qualquer amiga pra ir lá na clínica, pede uma vizinha pra levar recado ou ligar pra nós.
- Ah mas pode deixar. Eu olho daqui de cima a clínica lá embaixo no aterro, tão do lado do mar. Lá é fácil de mandar notícia. Lá tem a brisa do mar e o vento passeia. Se eu precisar, o vento consegue chegar lá e te chama, e eu sei que você vem!
As duas se abraçam novamente. Os demais também se despedem e todos descem sentido do mar. Na cabeça do jovem médico, que se considera cético e científico, passam admiração e curiosidade - pela origem das intuições, pela voz do vento, e, talvez mais que tudo, pela força dos vínculos.
domingo, 28 de janeiro de 2018
Reflexões soltas sobre meus medos e inseguranças frente ao paciente; principalmente por todas as técnicas que não domino, todos os protocolos que não conheço
Em São e Salvo, livro de Juan Gérvas sobre prevenção de intervenções desnecessárias, é dito em algum momento que o médico “rebelar-se contra a ideia tecnicista e biológica, e recuperar a arte do curandeiro.” Algo assim. O que essa frase poderia significar?
Um dos primeiros autores da sociologia, Erving Goffman, propôs que as interações humanas se dão como numa peça de teatro. Pelo cenário, pelas vestes, pelo título meu e do outro, entendo qual cena deve se desenrolar; e sigo o script das entrelinhas. Por isso vestimentas, títulos, forma são tão importante a profissões e instituições. A quebra do script - do médico sem jaleco, ou tatuado, ou com nariz de palhaço a la Patch Adams - leva a algo entre humor,estranhamento e desconfiança por outros, que tentam sustentar e retomar a homeostase social.
Em consonância com as ideias do Goffman, os textos budistas descrevem uma ausência do ego, e que as identidades que construímos e nos vemos sendo na vida são “vazias”. São papéis ou máscaras ou bolhas de realidade. Ainda nessa linha, pesquisas da neurofisiologia comportamental e da psicologia evolucionária - como descritas por Robert Wright (jornalista científico) e Antônio Damásio (pesquisador) -vem sugerindo que o nosso eu narrativo não é quem está no controle. Há um circuito cerebral responsável pela ideia de eu, de identidade, de explicar decisões, que não é o mesmo circuito que toma as ditas decisões. Um circuito responsável por criar coerência narrativa na nossa história, muitas vezes justificando em argumentos a posteriori o que de fato foi feito por motivos emocionais e impetuosos. A ideia do cérebro dividido, também explorado por Daniel Goleman em inteligência emocional.
Nesse sentido, o médico como papel social é uma representação menor do arquétipo de curandeiro - que em outras sociedades será o xamã, o líder religioso, e assim sucessivamente. Despido a primeira camada, essa do médico e do paciente, encontra-se um arquétipo de curandeiro e alguém com um sofrimento, não necessariamente doença. O que essa pessoa procura? Como se dá essa interação?
Usando a metáfora de Rita Charon em O Corpo que se Conta, as pessoas têm mundos internos, de sentimentos, de experiências fisiológicas, de narrativas (sejam elas vazias como diz ou budismo ou não) e este mundo tem suas membranas. Para que o sinal seja transmitido, são necessárias histórias. Histórias da fala, do conto, do como fiz, como foi, como senti; e histórias do corpo, do gesto, do riso e do choro, do espasmo involuntário, do olhar profundo. Surge como necessidade para a ocorrência da interação uma identidade. Um script. Roupas e títulos. Uma história. Assim concluímos que o papel fundamental do curandeiro, que Gervas quer recuperar e que Charon levanta, é o de organizar aquele processo de sofrimento na história da vida da pessoa que te procura. Curado ou não, o transtorno se integra naquele momento e isso basta nos níveis internos e externos.
No entanto a história é a forma da interação. Não o conteúdo. Então podemos, novamente evocando o budismo, despir outra camada do script. Esquecer arquétipos. Pensar que há duas pessoas se encontrando e nada mais. Qual o conteúdo ali, por trás das histórias?
Como seres sociais, necessitamos intrinsicamente de conexão. Para sobreviver no ambiente evolucionário, precisamos trabalhar em grupo. Formar vínculos individuais e comunitários. Quando uma pessoa vem hoje com um sofrimento em sua vida, seria ela uma outra forma de um ser primitivo que vem com a necessidade de enfrentar um tigre, escalar uma árvore para pegar frutos, ou sobreviver ao frio? Necessitaria apenas de conexão? É possível que sim.
Ao menos do lado do curandeiro, o lado médico, essa visão do vínculo, da conexão como objetivo principal ganha um valor importante. O olhar interessado e genuinamente atento ao paciente e sua história me parece suficiente independente de qualquer instrumental médico por dois motivos:
Em primeiro gera uma motivação de aprendizado que pode transpor as barreiras factícias de conhecimento dividido por profissão. Há pesquisas de motivação (em especial a SDT de Ryan e Deci) que confirmam o quão importante é acreditar que a atividade serve a um outro para se sentir motivado a fazê-la. E se a motivação surge e o outro necessita de algo que foge ao seu conhecimento inicial, naturalmente se procura esse conhecimento, seja ele da medicina de família, da fisioterapia, da nutrição, da psicologia, ou, mais “exótico”, da engenharia, da matemática, da literatura, da antropologia. (Ivan Illich, por exemplo, defendia uma sociedade sem escolas por acreditar nesse aprendizado não institucional, sem certificados e títulos)
Em segundo esse vínculo, despido das limitações cognitivas que se tem ao assumir apenas o papel de médico, e olhando para o outro sem frameworks prévios, se abre espaço para uma criatividade do pensar e do agir; Esta criatividade é essencial para dar resposta ao sofrimento narrativamente complexo do outro. Lembra um pouco o texto de Clarice Lispector “então porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é noite - então estendo a mão e salvo uma criança. Porque é de noite, porque estou sozinha na noite de outra pessoa, porque este silêncio é muito grande para mim”
Fico tentado a concluir então que, despido de todos os rótulos, todos mesmo, buscando essa base por trás dos arquétipos, dos papéis, do jaleco e do título, não há relação médico paciente. Há relação pessoa pessoa. Eu-outro. E basta a uma pessoa a sensibilidade para se mover pelo que a pessoa outra traz. Basta se abrir ao vínculo. Movido desta maneira, tudo é possível, mesmo que se saiba muito pouco.
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