domingo, 28 de janeiro de 2018

Reflexões soltas sobre meus medos e inseguranças frente ao paciente; principalmente por todas as técnicas que não domino, todos os protocolos que não conheço

Em São e Salvo, livro de Juan Gérvas sobre prevenção de intervenções desnecessárias, é dito em algum momento que  o médico “rebelar-se contra a ideia tecnicista e biológica, e recuperar a arte do curandeiro.” Algo assim. O que essa frase poderia significar?
Um dos primeiros autores da sociologia, Erving Goffman, propôs que as interações humanas se dão como numa peça de teatro. Pelo cenário, pelas vestes, pelo título meu e do outro, entendo qual cena deve se desenrolar; e sigo o script das entrelinhas. Por isso vestimentas, títulos, forma são tão importante a profissões e instituições. A quebra do script - do médico sem jaleco, ou tatuado, ou com nariz de palhaço a la Patch Adams - leva a algo entre humor,estranhamento e desconfiança por outros, que tentam sustentar e retomar a homeostase social.
Em consonância com as ideias do Goffman, os textos budistas descrevem uma ausência do ego, e que as identidades que construímos e nos vemos sendo na vida são “vazias”. São papéis ou máscaras ou bolhas de realidade. Ainda nessa linha, pesquisas da neurofisiologia comportamental e da psicologia evolucionária - como descritas por Robert Wright (jornalista científico) e Antônio Damásio (pesquisador) -vem sugerindo que o nosso eu narrativo não é quem está no controle. Há um circuito cerebral responsável pela ideia de eu, de identidade, de explicar decisões, que não é o mesmo circuito que toma as ditas decisões. Um circuito responsável por criar coerência narrativa na nossa história, muitas vezes justificando em argumentos a posteriori o que de fato foi feito por motivos emocionais e impetuosos. A ideia do cérebro dividido, também explorado por Daniel Goleman em inteligência emocional.
Nesse sentido, o médico como papel social é uma representação menor do arquétipo de curandeiro - que em outras sociedades será o xamã, o líder religioso, e assim sucessivamente. Despido a primeira camada, essa do médico e do paciente, encontra-se um arquétipo de curandeiro e alguém com um sofrimento, não necessariamente doença. O que essa pessoa procura? Como se dá essa interação?
Usando a metáfora de Rita Charon em O Corpo que se Conta, as pessoas têm mundos internos, de sentimentos, de experiências fisiológicas, de narrativas (sejam elas vazias como diz ou budismo ou não) e este mundo tem suas membranas. Para que o sinal seja transmitido, são necessárias histórias. Histórias da fala, do conto, do como fiz, como foi, como senti; e histórias do corpo, do gesto, do riso e do choro, do espasmo involuntário, do olhar profundo. Surge como necessidade para a ocorrência da interação uma identidade. Um script. Roupas e títulos. Uma história. Assim concluímos que o papel fundamental do curandeiro, que Gervas quer recuperar e que Charon levanta, é o de organizar aquele processo de sofrimento na história da vida da pessoa que te procura. Curado ou não, o transtorno se integra naquele momento e isso basta nos níveis internos e externos.
No entanto a história é a forma da interação. Não o conteúdo. Então podemos, novamente evocando o budismo, despir outra camada do script. Esquecer arquétipos. Pensar que há duas pessoas se encontrando e nada mais. Qual o conteúdo ali, por trás das histórias?
Como seres sociais, necessitamos intrinsicamente de conexão. Para sobreviver no ambiente evolucionário, precisamos trabalhar em grupo. Formar vínculos individuais e comunitários. Quando uma pessoa vem hoje com um sofrimento em sua vida, seria ela uma outra forma de um ser primitivo que vem com a necessidade de enfrentar um tigre, escalar uma árvore para pegar frutos, ou sobreviver ao frio? Necessitaria apenas de conexão? É possível que sim. 
Ao menos do lado do curandeiro, o lado médico, essa visão do vínculo, da conexão como objetivo principal ganha um valor importante. O olhar interessado e genuinamente atento ao paciente e sua história me parece suficiente independente de qualquer instrumental médico por dois motivos:
Em primeiro gera uma motivação de aprendizado que pode transpor as barreiras factícias de conhecimento dividido por profissão. Há pesquisas de motivação (em especial a SDT de Ryan e Deci) que confirmam o quão importante é acreditar que a atividade serve a um outro para se sentir motivado a fazê-la. E se a motivação surge e o outro necessita de algo que foge ao seu conhecimento inicial, naturalmente se procura esse conhecimento, seja ele da medicina de família, da fisioterapia, da nutrição, da psicologia, ou, mais “exótico”, da engenharia, da matemática, da literatura, da antropologia.  (Ivan Illich, por exemplo, defendia uma sociedade sem escolas por acreditar nesse aprendizado não institucional, sem certificados e títulos)
Em segundo esse vínculo, despido das limitações cognitivas que se tem ao assumir apenas o papel de médico, e olhando para o outro sem frameworks prévios, se abre espaço para uma criatividade do pensar e do agir; Esta criatividade é essencial para dar resposta ao sofrimento narrativamente complexo do outro. Lembra um pouco o texto de Clarice Lispector “então porque não sei fazer nada e porque não me lembro de nada e porque é noite - então estendo a mão e salvo uma criança. Porque é de noite, porque estou sozinha na noite de outra pessoa, porque este silêncio é muito grande para mim

Fico tentado a concluir então que, despido de todos os rótulos, todos mesmo, buscando essa base por trás dos arquétipos, dos papéis, do jaleco e do título, não há relação médico paciente. Há relação pessoa pessoa. Eu-outro. E basta a uma pessoa a sensibilidade para se mover pelo que a pessoa outra traz. Basta se abrir ao vínculo. Movido desta maneira, tudo é possível, mesmo que se saiba muito pouco.

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