Dia de visita domiciliar. A médica supervisora, Ana, tem algumas semanas que fala da paciente Luz, 59 anos. Que vem sentindo um necessidade de vê-la e estar com ela. Luz tem um câncer de colo do útero avançado, diagnosticado na clínica da família, e agora é acompanhada num hospital de referência. Mas como boa equipe de saúde da família, a supervisora e seus residentes, a enfermeira e os agentes de saúde mantém o acompanhamento e o vínculo. Exceto que a greve nos impediu de subir para ver a paciente por três meses, e ela, cada vez mais fraca, não desceu as escadas de seu morro pra chegar a Clínica, no aterro perto do mar.
Quando subimos as escadas e viramos a esquina do beco onde mora Luz, ela está do lado de fora sentada numa almofadinha olhando pro horizonte distante. Seu corpo negro emagrecido logo se levanta e seu rosto já encovado abre um sorriso.
- Doutora! Minha querida doutora! Eu sabia que a senhora vinha! Ficava aqui só te esperandoQuando subimos as escadas e viramos a esquina do beco onde mora Luz, ela está do lado de fora sentada numa almofadinha olhando pro horizonte distante. Seu corpo negro emagrecido logo se levanta e seu rosto já encovado abre um sorriso.
- Eu queria tanto ter vindo logo Luz, mas teve greve, teve tanta coisa. Só que hoje eu já não aguentei mais esperar
- To tão feliz que você veio Ana! Minha doutora! - as duas se abraçam apertado. Luz também cumprimenta o jovem médico e o estudante que acompanham a supervisora - venha, vamos entrar
Dentro da casa, Luz conta que agora controla a dor com uso direto da Morfina, remédios mais fracos já não tem efeito. Conta que interrompeu a quimio devido aos efeitos colaterais, que agora faz radioterapia para reduzir a massa principal, mas que uma tomografia revelou metástases do câncer infiltradas por seus ossos e corpos. Enquanto conta os detalhes, a voz de Luz quebra um pouco, e vem com lágrimas:- Eu não imaginei que seria tão lento... E eu queria tanto viver. Tem sido tão difícil Ana! O meu sorriso... eu não consigo mais sorrir inteira, é um sorriso mais ou menos sabe?
A médica supervisora senta-se ao lado da paciente, a abraça forte e assim, escutando e ninando a outra, começa também a chorar.
...
Um tempo se passa. Informações médicas são colhidas, tempo de radioterapia, medicações atuais para dor e para as feridas, acesso a Riocard e auxílio alimentar (este último não há, logo registramos que será preciso buscar uma assistente social), rede de apoio, entre outras. Na despedida, as duas mulheres de espírito forte voltam a dialogar como amigas.
- Eu to tão feliz que você veio!
- Eu senti você me chamando. Há tanto tempo que só tinha você na minha cabeça
- Ah eu chamei sim, chamei muito Ana. Falei com Deus e com os orixás
- Chegou em mim! E se precisar Luz, me chama de novo. Pede qualquer amiga pra ir lá na clínica, pede uma vizinha pra levar recado ou ligar pra nós.
- Ah mas pode deixar. Eu olho daqui de cima a clínica lá embaixo no aterro, tão do lado do mar. Lá é fácil de mandar notícia. Lá tem a brisa do mar e o vento passeia. Se eu precisar, o vento consegue chegar lá e te chama, e eu sei que você vem!
As duas se abraçam novamente. Os demais também se despedem e todos descem sentido do mar. Na cabeça do jovem médico, que se considera cético e científico, passam admiração e curiosidade - pela origem das intuições, pela voz do vento, e, talvez mais que tudo, pela força dos vínculos.
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