Histórias e ensinamentos dos encontros que se dão em um consultório por aí... *os nomes e dados dos pacientes aqui apresentados são fictícios em prol de sua preservação
quinta-feira, 16 de agosto de 2018
A casca grossa (ou "eu tiro de letra")
Entra Rosa, 63 anos, o corpo de senhora num vestido justo e bem passado, o sorriso de dentes brancos emoldurados na pele negra; olhos como os de Capitu, oblíqua. Nos abraçamos fortes.
- Ah doutor, quanto tempo
- É que estava de férias Rosa
- Ah mas que bom que voltou
- Tava bom onde eu estava também, mas é bom estar de volta - Sorrimos um pro outro - Mas bem, como posso lhe ajudar hoje?
- Ah doutor eu venho sentindo uma dor na barriga...
- E também vem um formigamento que passa aqui pelo peito, pelo pescoço...
- E essa mão aqui quando eu to lavando água na pia, mas só quando tá muito frio, fica meio inchada...
Respiro. Tenho mais consultas só com Rosa do que algumas famílias de pacientes. Em muitas, explorei queixa a queixa. Em outras, prescrevi remédios sem fazer-lhe um exame físico. Me lembro de pelo menos duas vezes onde tentei outro ângulo:
"Rosa, investigamos seu corpo todo e não vi nada. Como está o coração?" "Ué se o senhor diz que bem, está bem"
"Rosa, mais uma vez fico pensando se o seu corpo não tá falando de algum sofrimento?" "É nada doutor. Lá em casa tá tudo bem, vou até fazer uma festa para família"
Em algum momento parei de tentar. E aí, sem que fossem feitas perguntas diretas, mas através dos muitas consultas de Rosa fui descobrindo: Dos filhos, um deles até hoje mora com ela, desempregado, tendo comida e roupa lavada da mãe. Dos netos, pelo menos três ela cria, e chama de filhos pela responsabilidade que há anos assume. Dos pais e irmãos, estão na Bahia - aliás com orgulho ela conta que sua mãe celebra em breve 100 anos.
Hoje por acaso dona Rosa conta do marido:
- Mas eu insisto tanto pra ele vir doutor. A barriga dele ta virando uma bola. E ele bebe o dia inteiro e não vem ao médico. Fica na oficina, bebe o dia todo, chega sujo em casa e quer me procurar que nem mulher! Mas ele não vem...
- Então o marido bebe todo dia dona Rosa?
- Todo dia, a mesmíssima coisa.
- Deve ser difícil viver com um marido assim? - Digo, na nova(velha) tentativa de encontrar o ponto chave de Rosa
- Ah não meu querido, isso eu tiro de letra! Eu dou uns safanões nele, boto ele pra dormir no sofá
- E já pensou em terminar com ele?
- Ih, já foi uma vida toda, não vale a pena não. Além do quê, eu tiro de letra!
Respiro de novo. Mais algumas perguntas e estamos discutindo de novo os formigamentos. E enquanto escrevo algumas medicações que acho pouquíssimo provável de funcionarem pra Rosa, fico pensando se há alguma forma de vencer essa casca grossa.
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