sexta-feira, 10 de julho de 2020

O remédio

Entra Ariovaldo. Magro, da pele negra enrugada por não se sabe quantos anos de uma vida festiva. Traz sempre um sorriso - hoje, escondido na máscara - e um certo estilo - o paciente veste uma bela camisa de seda chinesa, decorada com dragões, e direito a botões de corda. E já é conhecido do jovem médico.
   - Ô Ariovaldo
   - Ô doutor, e ai, tudo bem?
   - Bem sim. E o Sr. meu amigo, como posso te ajudar hoje?
   - Só renovar a receita
 Enquanto o jovem médico renova alguns controlados que Ariovaldo usa pra evitar convulsões, puxa distraído algum papo.
   - Blusa bonita
   - É, é da china. Quando era novo fui pra Hong Kong, Xangai. Fui três vezes. Naquela época era feliz
   - Naquela época?
   - É doutor, minha família até tem insistido pra conversar com o senhor - começa Ariovaldo, que, o médico lembra, mora com a mãe e o irmão - eu ando triste, chorando por qualquer coisa. Chorando com comercial de televisão
  O jovem médico olha Ariovaldo. A receita renovada já está pronta na mão a essa altura da conversa.
   - E de onde vem esse choro Ariovaldo?
   - Não sei doutor, não sei. Eu vejo filme, choro. Vejo casal se encontrando na novela, choro
   - Será que vem do coração então?
   - Iiih doutor... tem mais de 30 amores nesse coração
   - Mais de 30?
   - Eu nunca esqueci nem a primeira, elas foram ficando. Mas agora, a atual não quer me ver. Disse que não posso visitar ela por causa do vírus;
   - A quarentena tá sendo difícil né Ariovaldo?
   - Muito difícil doutor. Não tem a namorada, não tem samba pra ver gente feliz. Só tem a família e a televisão...
  A conversa se estende, mas não muito, porque há outros pacientes esperando. No fim de algumas outras perguntas sobre as emoções de erivaldo, o jovem médico propõe, por ser o recurso que tem conseguido prover:
   - Sr Ariovaldo, a gente pode pensar em um remédio se a tristeza estiver muito grande. Ele poderia ajudar a suportar
   Ariovaldo não hesita em responder, sorrindo e já se levantando pra partir:
    - Ah doutor, o meu remédio é ela. É o fim desse vírus pra sambar com ela. Não tem outro remédio não.

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