domingo, 30 de agosto de 2020

Um passarinho na gaiola (ou, as complexidades da vida em quarentena)

Maria tem 65 anos, cabelos tingidos de preto mas com as raizes bem brancas, e um colete rosa, com saia rosa, sapatilhas rosas e bolsas rosas combinando. Entra com uma lentidão nos passos, e olhando para baixo.
- Como posso te ajudar? - pergunta o jovem médico
- Renovar a receita doutor, tem muito tempo que não renovo. E eu venho sentido uma dor aqui no peito, e uns formigamentos assim na cabeça, e aí tem hora que tremo toda e não respiro, e as vezes meus olhos ardem...
O jovem médico respira, olha para receita - uma lista grande de remédios para diabetes, hipertensão e asma - e pensa que terá trabalho. Conversa um pouco com Maria sobre seus sintomas, e depois parte para ver o exame físico. E por último os exames de sangue de Maria, de nove meses atrás.
- Tem muito tempo mesmo que a senhora não vem né D. Maria?
- A consulta tava marcada para março doutor, mas aí foi o início desse vírus aí, não deu, meus filhos não deixaram
Em silêncio, o médico pensa: filhos espertos, protegendo a mãe. E avalia tudo que viu dos exames físico e de sangue. Apesar do tempo, a diabetes bem controlada, hoje a pressão na meta, o peso se mantendo o mesmo, o pé bem cuidado. Decide apostar em uma pergunta para resumir toda lista de sintomas da paciente:
- Dona Maria, por que a senhora pensa que deu de acontecer tudo isso no seu corpo ao mesmo tempo esse mês?
- Ah doutor... (e lágrimas vem aos olhos) a minha mãe morreu doutor. Morava com meu irmão e morreu desse vírus aí. E eu não pude nem ir no enterro doutor. Foi um enterro rapidinho mas eu não pude nem ir. Nem olhar pra ela uma última vez. Eles não me deixam sair nem pra isso. E eu fiquei em casa sozinha chorando...
- eu me sinto um passarinho na gaiola sabe doutor? Nem à feira, nem de máscara, e era eu que fazia as compras de casa, escolha as frutas, às verduras, mas eles estão tão preocupados comigo. E aí a minha mãe...
O jovem médico deixa que Maria fale e chore. Pergunta como foi vir à clínica hoje, e houve que os filhos foram convencidos por tudo que Maria vinha sentindo. Propõe então que Maria diga aos filhos que o médico deu ordem para leva-la, de carro ou uber, no cemitério onde está a mãe, para que ela possa conversar por lá, mesmo que um pouco atrasada.
Depois que a paciente se vai, fica com seus pensamentos: Fizéssemos uma quarentena melhor, talvez a mãe de Maria não tivesse partido. Fizéssemos como seus filhos, porque a paciente é de grupo de risco, e Maria passaria muito mais tempo sofrendo em sua gaiola sem poder sequer visitar a mãe. Qual a linha da responsabilidade social, que bota em risco os outros e nós, e da saúde mental?

sexta-feira, 10 de julho de 2020

O remédio

Entra Ariovaldo. Magro, da pele negra enrugada por não se sabe quantos anos de uma vida festiva. Traz sempre um sorriso - hoje, escondido na máscara - e um certo estilo - o paciente veste uma bela camisa de seda chinesa, decorada com dragões, e direito a botões de corda. E já é conhecido do jovem médico.
   - Ô Ariovaldo
   - Ô doutor, e ai, tudo bem?
   - Bem sim. E o Sr. meu amigo, como posso te ajudar hoje?
   - Só renovar a receita
 Enquanto o jovem médico renova alguns controlados que Ariovaldo usa pra evitar convulsões, puxa distraído algum papo.
   - Blusa bonita
   - É, é da china. Quando era novo fui pra Hong Kong, Xangai. Fui três vezes. Naquela época era feliz
   - Naquela época?
   - É doutor, minha família até tem insistido pra conversar com o senhor - começa Ariovaldo, que, o médico lembra, mora com a mãe e o irmão - eu ando triste, chorando por qualquer coisa. Chorando com comercial de televisão
  O jovem médico olha Ariovaldo. A receita renovada já está pronta na mão a essa altura da conversa.
   - E de onde vem esse choro Ariovaldo?
   - Não sei doutor, não sei. Eu vejo filme, choro. Vejo casal se encontrando na novela, choro
   - Será que vem do coração então?
   - Iiih doutor... tem mais de 30 amores nesse coração
   - Mais de 30?
   - Eu nunca esqueci nem a primeira, elas foram ficando. Mas agora, a atual não quer me ver. Disse que não posso visitar ela por causa do vírus;
   - A quarentena tá sendo difícil né Ariovaldo?
   - Muito difícil doutor. Não tem a namorada, não tem samba pra ver gente feliz. Só tem a família e a televisão...
  A conversa se estende, mas não muito, porque há outros pacientes esperando. No fim de algumas outras perguntas sobre as emoções de erivaldo, o jovem médico propõe, por ser o recurso que tem conseguido prover:
   - Sr Ariovaldo, a gente pode pensar em um remédio se a tristeza estiver muito grande. Ele poderia ajudar a suportar
   Ariovaldo não hesita em responder, sorrindo e já se levantando pra partir:
    - Ah doutor, o meu remédio é ela. É o fim desse vírus pra sambar com ela. Não tem outro remédio não.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

Saúde Financeira


Entra Fernando, 41 anos, que o jovem médico não via há 2 meses. Sorridente, o corpo grande em todas as direções, entra quase que sambando no consultório. Senta-se para a consulta e dá um aperto e um riso caloroso. Fernando tem a energia espiritual e o corpo físico de um buda da fartura.
- Doutor, eu sei que andei desaparecido, mas aí eu precisava da receita, insulina, remédio da pressão, do colesterol, acabou tudo
O jovem médico olha o prontuário de Fernando, lembra do acompanhamento prévio. Fernando chegou com a diabetes e a pressão mal controladas, isso porque já tomava sete remédios diferentes. Alguma conversa e promessas de exercício e dieta não feitos depois, paciente e médico pactuaram começar uma aplicação noturna de insulina. E com seu risco cardíaco alto, foi necessário medicar também o colesterol. Dai pra frente eram encontros quinzenais para ajustar a dose de insulina, e foi no meio do ajuste que Fernando começou a faltar.
- Ok, vamos renovar tudo. Mas e o mapa Fernando, vamos ver como anda a glicose?
- Ih doutor, eu me esqueci de fazer, eu tenho conferido, tá sempre uns 200 (alta), e não deixo de tomar. Mas não anotei - e sorri
- E o exercício físico?
- Não deu pra começar
- E a nutricionista?
- Cê pode me dar um esporro mas eu também faltei - e mais riso
O jovem médico também ri, mas o olha em silêncio, até que Fernando fica sério, e fala:
- É que doutor, eu sou gerente da oficina que trabalho, E um funcionário está doente, outro viajando, e eu tenho chegado 1 hora mais cedo pra arrumar o estoque e também não tenho hora pra sair não! Todo dia trabalhando, e olha nem bato o ponto porque senão o patrão não ia conseguir pagar o que eu tenho de hora extra
- Mas isso não é ilegal Fernando?
- Doutor, É. Eu sei que é inclusive porque já fui patrão, de um tempo que eu e minha esposa estávamos com um comércio crescendo lá na região dos lagos. Mas doutor, agora? No aperto de trabalho? No meu entendimento doutor, tem todo dia uma sombra de alguém querendo a minha vaga, e eu não posso bobear.
- Aí a saúde...
- Aí tem a saúde financeira né doutor, que eu tenho um padrão de vida pra mim, minha esposa e filho, viagem, estudo - fala firme. E logo depois, voltando a ser buda, ri - quer dizer, sei que são escolhas. Mas no meu entendimento...
- Você tem razão - interrompe o jovem médico- dinheiro também é saúde Fernando, tem até ciência que prova, e gente rica vive mais inclusive, mas na busca por isso a gente também adoece
Pausa
 - Quer dizer, eu só não consigo te prescrever dinheiro, que acho que na farmácia do sus tá em falta...
Mais risos. Fernando volta com diversos comentários espirituosos. No fim, fica acordado voltar ao plano de aumentar a insulina, e pelo menos ajustar os remédios, sem pressão para mudar o estilo de vida agora. E novo retorno em 15 dias com o mapa da glicose. O paciente sai e o jovem médico pensa: qual saúde, nessa escolha de sofia, Fernando decidirá buscar.