sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Dos pecados

Entra Joana.Senhora magra, de rugas no rosto e saia longa e florida, e um sorriso honesto, sem vergonha de mostrar que já lhe faltam dentes no fundo da boca.
"Eu vim pra pedir esses exames aqui do oftalmologista, pra ele me operar de catarata"
"Algo mais?" Diz o jovem médico, aplicando uma técnica de entrevista que permite fazer o mapa das queixas do paciente
"Tem uns seis meses que esse meu dedo trava e dói doutor"
"Entendo. Alguma outra coisa?"
"Ah, eu tenho uma dor no ombro, mas essa é a dor dos pecados"
O médico engasga "dor dos pecados?"
 "É, é quando temos uma dor antiga, que não passa. A gente fala que é dos pecados que a gente carrega. Nós temos tantos né doutor?"
Ao jovem médico só resta rir e acenar em concordância: "Temos mesmo dona Joana, temos mesmo."

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

O que nunca aprendi

Iara, 48 anos, vem a consulta com os cabelos abaixados com creme e presos rentes para trás. É atendida pela enfermeira da equipe, onde conta que veio pra acompanhar a pressão alta. Conta que veio para o Rio de Janeiro do Pará, deixando familiares para trás em busca de emprego. Trabalha como faxineira para, em suas palavras, "uma patroa muito boa." A enfermeira a acolhe em sua primeira consulta, e conforme as perguntas vão desenrolando, Iara desaba em choro. Um choro contido, de ombros tensos e musculatura do pescoço saltando. Fala que no caminho para a casa da tal patroa boa há uma ponte, e que ela já parou ali algumas vezes pensando em pular. São 19:30, a 30 minutos o expediente acabou, e ainda há outro paciente para a equipe atender. A enfeira chama o jovem médico. Os dois juntos a acolhem, tomam medidas inicias, e se agenda uma consulta médica para uma avaliação mais completa.
No retorno, Iara ainda é uma mulher que senta contida, segurando a bolsa nas mãos e o choro nos olhos, quase não respondendo quando a pedimos para falar.
"Há quanto tempo você tem se sentido triste Iara?""Muitos anos""Aconteceu alguma coisa quando tudo começou?""É só a vida que é muito dura""É o emprego? A família?""A vida""E tem alguma coisa na sua vida agora que te dê prazer? Vontade de fazer?""Não tem nada não" e aperta a bolsa no colo"E antes disso tudo começar, o que tinha? O que você gostava de fazer?"Novo choro. Iara tenta conter as lágrimas com a força do pescoço e das mãos na bolsa, mas elas escorrem. O jovem médico, O supervisor psiquiatra e a acadêmica esperam."Não tem nada! Nunca gostei de nada""Nem quando era criança Iara?" instiga o psiquiatra"É que eu sempre trabalhei. Minha mãe e meu pai me botavam pra trabalhar na roça, limpar a casa, ajudar na cozinha, tomar conta dos irmãos. Eu nunca brinquei.Silêncio"Acho que nunca aprendi a ser criança."
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A entrevista segue, mas a frase fica presa no ar. Ao final, pra casa, Iara leva três coisas. Um remédio antidepressivo. Um remédio para diminuir o impulso de suicídio. E, talvez a mais importante, uma orientação de aprender a brincar.