Joana entra com seu rosto enrugado e um dos típicos vestidos floridos que costuma sempre usar. Tem 65 anos, e é a terceira vez que o jovem médico a vê no mês. A consulta havia sido combinada para reavaliar uma grande placa fúngica que tinha nas dobras da coxa.
- E aí dona Joana? Espero que nessa segunda tentativa a gente tenha acertado na medicação - O jovem médico havia combinado antifúngicos orais com pomadas de forma "agressiva" visto que na primeira semana o tratamento não só não funcionou como aumentaram as placas.
- Tá um pouco melhor, mas ainda coça muito - fala Joana com seu tom factual.
Médico e paciente prosseguem para uma rápida reavaliação das placas, que diminuíram mas muito pouco. O jovem está encafifado. Depois de quinze dias com o tratamento proposto, esperava uma melhora maior. Tenta reiniciar seu raciocínio, passando ponto a ponto por tudo que sabe.
- E a senhora está tomando os remédios como, dona Joana?
- Eu tomo o que o senhor me passou direitinho
- Direitinho como?
- Todo dia, né?
- Mas dona Joana, o remédio do fungo era uma vez por semana, dois comprimidos. A moça da farmácia não te deu só quatro comprimidos?
- Acho que deu
- E não acabou?
- Se for aquele azul e branquinho acabou sim, semana passada. Aquele outro pequenininho e o grandão não
- É, então a senhora toma outros remédios? Pra que?
- Ah pro coração né
- Pro coração? - Enquanto a conversa se desenrola o jovem médico vai buscando no prontuário da paciente informação. Joana toma três comprimidos para pressão alta e coração grande, e mais dois comprimidos para diabetes.
Um vínculo entre diabetes mal controlada e infecções salta a cabeça do médico.
- E como a senhora toma esses remédios todos dona Joana?
- Ah como o senhor mandou.
- Hmm, não me lembro de ter passado esses pra senhora, são mais antigos.
- Então deve ser a outra médica que passou. Mas tomo direitinho.
- Quantos toma de manhã dona Joana?
A paciente se encolhe aos poucos na cadeira. Um pouco acuada, levanta só os olhos para o médico e admite: não lembro.
Com certo medo de constrange a paciente, mas precisando compreender, o médico pergunta:
- A senhora saber ler?
- Não, não sei não
- E alguém em casa sabe para separar os remédios?
- Tem não. Moro sozinha
- Mas tem uma amiga?
- Tem umas vizinhas. Mas elas não vão lá todo dia. E eu não quero incomodar
De cabelos brancos, rosto enrugado e vestido florido, Joana olha o médico, esperando. Uma nova pergunta? Uma resposta? O jovem médico a olha de volta - pensando em fisiopatologias, glicosilação proteica com dano celular, microorganismos oportunistas, interação medicamentosa - e todo filtrado que sua medicina oferta, pílulas e orientações listadas numa receita, não chega na simpática Joana. Então ele marca um novo retorno para a paciente. Discute o caso, e decide sob orientação da enfermeira separar os remédios todos em caixinhas - um desenho de sol, um de almoço, outro de lua. Com rodízio da equipe - enfermeira, técnica de enf., agentes de saúde - toda semana as caixinhas são preenchidas como doses já compartimentadas para sete dia.
Algum tempo depois, nova avaliação de Joana, e o fungo sumiu. A diabetes ainda pode melhorar um pouco nos exames, mas se for parar mudar o remédio o caminho já está traçado. Num riso de satisfação, o jovem médico pergunta, só para confirmar:
- E agora dona Joana, como estão os remédios?
- Ah, to tomando direitinho. Do jeito que a moça separou.