domingo, 26 de setembro de 2021

Palavras

É dia de visita domiciliar médica. Entra, portanto, o médico na casa de Alice, que o espera sentada em um sofá, as mãos cruzadas sobre a saia cinza, sapatilhas amarelas combinando com a blusa de crochê que está usando para fugir do frio.
- Boa tarde dona Alice, sou o médico da unidade e vim te atender hoje. Boa tarde, boa tarde - começa o médico, cordial, se (re)apresentando à paciente e aos familiares presentes. O médico já conhece Alice. É a terceira visita que faz, e vem acompanhando a senhora de 88 anos por uma suspeita de Alzheimer, além de outras questões. Alice aguarda poucos exames para confirmar o provável diagnóstico. E reclamou a semana inteira de dor nos joelhos, pelo que conta sua neta, que pediu a visita.
- Posso me sentar aqui do lado dona Alice?
- Pode claro. O senhor é doutor? Parece tão novinho - responde Alice simpática
- É claro que é. É ele vó, que veio da última vez. Não lembra? Não lembra vó, a senhora até falou que achou ele novinho também
- Falei? - questiona a paciente em genuína curiosidade, a mão ao queixo, a testa enrugada
- Claro que falou! - interpela novamente a neta
- Tudo bem dona Alice. A senhora se lembra de algo da minha última visita? Se não lembrar tudo bem - volta a falar o médico. E Alice então cala. O olhar vai para longe por um instante antes de responder. Até que por fim diz:
- Doutor, eu lembro sim. Eu lembro de tudo... Eu só esqueço é das palavras. As palavras pra contar.