Maria tem 65 anos, cabelos tingidos de preto mas com as raizes bem brancas, e um colete rosa, com saia rosa, sapatilhas rosas e bolsas rosas combinando. Entra com uma lentidão nos passos, e olhando para baixo.
- Como posso te ajudar? - pergunta o jovem médico
- Renovar a receita doutor, tem muito tempo que não renovo. E eu venho sentido uma dor aqui no peito, e uns formigamentos assim na cabeça, e aí tem hora que tremo toda e não respiro, e as vezes meus olhos ardem...
O jovem médico respira, olha para receita - uma lista grande de remédios para diabetes, hipertensão e asma - e pensa que terá trabalho. Conversa um pouco com Maria sobre seus sintomas, e depois parte para ver o exame físico. E por último os exames de sangue de Maria, de nove meses atrás.
- Tem muito tempo mesmo que a senhora não vem né D. Maria?
- A consulta tava marcada para março doutor, mas aí foi o início desse vírus aí, não deu, meus filhos não deixaram
Em silêncio, o médico pensa: filhos espertos, protegendo a mãe. E avalia tudo que viu dos exames físico e de sangue. Apesar do tempo, a diabetes bem controlada, hoje a pressão na meta, o peso se mantendo o mesmo, o pé bem cuidado. Decide apostar em uma pergunta para resumir toda lista de sintomas da paciente:
- Dona Maria, por que a senhora pensa que deu de acontecer tudo isso no seu corpo ao mesmo tempo esse mês?
- Ah doutor... (e lágrimas vem aos olhos) a minha mãe morreu doutor. Morava com meu irmão e morreu desse vírus aí. E eu não pude nem ir no enterro doutor. Foi um enterro rapidinho mas eu não pude nem ir. Nem olhar pra ela uma última vez. Eles não me deixam sair nem pra isso. E eu fiquei em casa sozinha chorando...
- eu me sinto um passarinho na gaiola sabe doutor? Nem à feira, nem de máscara, e era eu que fazia as compras de casa, escolha as frutas, às verduras, mas eles estão tão preocupados comigo. E aí a minha mãe...
O jovem médico deixa que Maria fale e chore. Pergunta como foi vir à clínica hoje, e houve que os filhos foram convencidos por tudo que Maria vinha sentindo. Propõe então que Maria diga aos filhos que o médico deu ordem para leva-la, de carro ou uber, no cemitério onde está a mãe, para que ela possa conversar por lá, mesmo que um pouco atrasada.
Depois que a paciente se vai, fica com seus pensamentos: Fizéssemos uma quarentena melhor, talvez a mãe de Maria não tivesse partido. Fizéssemos como seus filhos, porque a paciente é de grupo de risco, e Maria passaria muito mais tempo sofrendo em sua gaiola sem poder sequer visitar a mãe. Qual a linha da responsabilidade social, que bota em risco os outros e nós, e da saúde mental?