Dia de Saúde da Mulher na unidade. O médico está numa das últimas consultas - mãe e filha - Maria e Maria. Maria mãe, 72 anos, tem os cabelos brancos esvoaçantes e um sorriso de queixo elevado, de quem sabe coisas que só se revelam às mulheres de 70 anos.
- Quantas gestações, dona Maria?
- Duas, parto normal
- E algum aborto?
- Dois também, um porque aconteceu, um porque quis
Maria filha solta uma pequena exclamação "Mãe! Eu não sabia que a senhora abortou"
- Ah filha - responde Maria mãe fechando o sorriso numa face de ponderação - toda mulher já abortou, só não se conta na igreja...
O médico ri de sem graça. A filha arregala mais o olhos, mas acrescenta com a voz bem baixa - É verdade, eu também tive um aborto. Eu era jovem, e não estava preparada
Maria mãe olha de volta ao médico como quem diz "visse?"
e o médico então segue a entrevista.
Histórias e ensinamentos dos encontros que se dão em um consultório por aí... *os nomes e dados dos pacientes aqui apresentados são fictícios em prol de sua preservação
domingo, 18 de agosto de 2019
domingo, 20 de janeiro de 2019
Direitinho.
Joana entra com seu rosto enrugado e um dos típicos vestidos floridos que costuma sempre usar. Tem 65 anos, e é a terceira vez que o jovem médico a vê no mês. A consulta havia sido combinada para reavaliar uma grande placa fúngica que tinha nas dobras da coxa.
- E aí dona Joana? Espero que nessa segunda tentativa a gente tenha acertado na medicação - O jovem médico havia combinado antifúngicos orais com pomadas de forma "agressiva" visto que na primeira semana o tratamento não só não funcionou como aumentaram as placas.
- Tá um pouco melhor, mas ainda coça muito - fala Joana com seu tom factual.
Médico e paciente prosseguem para uma rápida reavaliação das placas, que diminuíram mas muito pouco. O jovem está encafifado. Depois de quinze dias com o tratamento proposto, esperava uma melhora maior. Tenta reiniciar seu raciocínio, passando ponto a ponto por tudo que sabe.
- E a senhora está tomando os remédios como, dona Joana?
- Eu tomo o que o senhor me passou direitinho
- Direitinho como?
- Todo dia, né?
- Mas dona Joana, o remédio do fungo era uma vez por semana, dois comprimidos. A moça da farmácia não te deu só quatro comprimidos?
- Acho que deu
- E não acabou?
- Se for aquele azul e branquinho acabou sim, semana passada. Aquele outro pequenininho e o grandão não
- É, então a senhora toma outros remédios? Pra que?
- Ah pro coração né
- Pro coração? - Enquanto a conversa se desenrola o jovem médico vai buscando no prontuário da paciente informação. Joana toma três comprimidos para pressão alta e coração grande, e mais dois comprimidos para diabetes.
Um vínculo entre diabetes mal controlada e infecções salta a cabeça do médico.
- E como a senhora toma esses remédios todos dona Joana?
- Ah como o senhor mandou.
- Hmm, não me lembro de ter passado esses pra senhora, são mais antigos.
- Então deve ser a outra médica que passou. Mas tomo direitinho.
- Quantos toma de manhã dona Joana?
A paciente se encolhe aos poucos na cadeira. Um pouco acuada, levanta só os olhos para o médico e admite: não lembro.
Com certo medo de constrange a paciente, mas precisando compreender, o médico pergunta:
- A senhora saber ler?
- Não, não sei não
- E alguém em casa sabe para separar os remédios?
- Tem não. Moro sozinha
- Mas tem uma amiga?
- Tem umas vizinhas. Mas elas não vão lá todo dia. E eu não quero incomodar
De cabelos brancos, rosto enrugado e vestido florido, Joana olha o médico, esperando. Uma nova pergunta? Uma resposta? O jovem médico a olha de volta - pensando em fisiopatologias, glicosilação proteica com dano celular, microorganismos oportunistas, interação medicamentosa - e todo filtrado que sua medicina oferta, pílulas e orientações listadas numa receita, não chega na simpática Joana. Então ele marca um novo retorno para a paciente. Discute o caso, e decide sob orientação da enfermeira separar os remédios todos em caixinhas - um desenho de sol, um de almoço, outro de lua. Com rodízio da equipe - enfermeira, técnica de enf., agentes de saúde - toda semana as caixinhas são preenchidas como doses já compartimentadas para sete dia.
Algum tempo depois, nova avaliação de Joana, e o fungo sumiu. A diabetes ainda pode melhorar um pouco nos exames, mas se for parar mudar o remédio o caminho já está traçado. Num riso de satisfação, o jovem médico pergunta, só para confirmar:
- E agora dona Joana, como estão os remédios?
- Ah, to tomando direitinho. Do jeito que a moça separou.
- E aí dona Joana? Espero que nessa segunda tentativa a gente tenha acertado na medicação - O jovem médico havia combinado antifúngicos orais com pomadas de forma "agressiva" visto que na primeira semana o tratamento não só não funcionou como aumentaram as placas.
- Tá um pouco melhor, mas ainda coça muito - fala Joana com seu tom factual.
Médico e paciente prosseguem para uma rápida reavaliação das placas, que diminuíram mas muito pouco. O jovem está encafifado. Depois de quinze dias com o tratamento proposto, esperava uma melhora maior. Tenta reiniciar seu raciocínio, passando ponto a ponto por tudo que sabe.
- E a senhora está tomando os remédios como, dona Joana?
- Eu tomo o que o senhor me passou direitinho
- Direitinho como?
- Todo dia, né?
- Mas dona Joana, o remédio do fungo era uma vez por semana, dois comprimidos. A moça da farmácia não te deu só quatro comprimidos?
- Acho que deu
- E não acabou?
- Se for aquele azul e branquinho acabou sim, semana passada. Aquele outro pequenininho e o grandão não
- É, então a senhora toma outros remédios? Pra que?
- Ah pro coração né
- Pro coração? - Enquanto a conversa se desenrola o jovem médico vai buscando no prontuário da paciente informação. Joana toma três comprimidos para pressão alta e coração grande, e mais dois comprimidos para diabetes.
Um vínculo entre diabetes mal controlada e infecções salta a cabeça do médico.
- E como a senhora toma esses remédios todos dona Joana?
- Ah como o senhor mandou.
- Hmm, não me lembro de ter passado esses pra senhora, são mais antigos.
- Então deve ser a outra médica que passou. Mas tomo direitinho.
- Quantos toma de manhã dona Joana?
A paciente se encolhe aos poucos na cadeira. Um pouco acuada, levanta só os olhos para o médico e admite: não lembro.
Com certo medo de constrange a paciente, mas precisando compreender, o médico pergunta:
- A senhora saber ler?
- Não, não sei não
- E alguém em casa sabe para separar os remédios?
- Tem não. Moro sozinha
- Mas tem uma amiga?
- Tem umas vizinhas. Mas elas não vão lá todo dia. E eu não quero incomodar
De cabelos brancos, rosto enrugado e vestido florido, Joana olha o médico, esperando. Uma nova pergunta? Uma resposta? O jovem médico a olha de volta - pensando em fisiopatologias, glicosilação proteica com dano celular, microorganismos oportunistas, interação medicamentosa - e todo filtrado que sua medicina oferta, pílulas e orientações listadas numa receita, não chega na simpática Joana. Então ele marca um novo retorno para a paciente. Discute o caso, e decide sob orientação da enfermeira separar os remédios todos em caixinhas - um desenho de sol, um de almoço, outro de lua. Com rodízio da equipe - enfermeira, técnica de enf., agentes de saúde - toda semana as caixinhas são preenchidas como doses já compartimentadas para sete dia.
Algum tempo depois, nova avaliação de Joana, e o fungo sumiu. A diabetes ainda pode melhorar um pouco nos exames, mas se for parar mudar o remédio o caminho já está traçado. Num riso de satisfação, o jovem médico pergunta, só para confirmar:
- E agora dona Joana, como estão os remédios?
- Ah, to tomando direitinho. Do jeito que a moça separou.
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