segunda-feira, 28 de maio de 2018

Visita Domiciliar

Pipas voavam por todos os lados nesse dia de céu azul
Era o tempo delas
Suas crianças e suas rabiolas, dançando no aterro do lado do mar, sem querer se punham a nos [cortejar!
Na passada já certa
até as primeiras vielas
daquele meu lugar de cuidar

Queria ser um pouco pipa
Mirar de cima a confusão de casas que se constituía aquela Comunidade que
sendo vertical, era Morro
pela história afro-brasileira, era Dendê
E por fim, como a parte que me cabe era trecho desse terreno todo, um trecho bem ali no fim da ilha, de onde se via toda aberta a Guanabara baia, era, óbvio, Boa Vista

Mas humano que sou subi seus becos a pé...
Embrenhei-me por sua tuberculosa umidade
Suas casas sem reboco
sempre me pareciam esboço
da própria arquitetura da existencialidade;

Bem,
viro uma esquina e me vem apertada saudade
passando lá pelo beco da Espada
não há mais Luz* e sua esparramada felicidade
Fumando maconha toda relaxada

Nas casas que entro procuro me fazer atento
À mais do que o paciente me fala,
mas como vive, se organiza, 
como é sua casa
"E que história é essa de ficar no quarto dos fundos, sem janela, mofo no teto, tudo fechado?"
"É que as vezes tem tiro na rua doutor, e no quarto da frente, com janela e brisa, fico muito assustado"
As vezes volto tão exausto que sou eu no fim do dia querendo um alento
Ah... Ser pipa solta no vento. Leve, leve (n)este momento.

Na volta, a vista que de fato é boa sempre me alivia
me inspira e meio que me recria
Ou quem o faz é dona Creuza*
que sempre encontro com a barriga ascítica e um vestido de deusa
E seus comentários tão cheios de vida
mesmo pra quem bebe uma dor, que pelas filhas admitidas,
é de um amor que nunca fechou as feridas

Termina a descida
e as vezes o céu contra-poente
em acerto com o mar logo ali na frente
Me dá uma paz colorida
… as vezes o peso da mente
Nubla tanto a vista da gente
Que só penso na dona Agradecida*
(enclausurada em sua casa, esquecida)


Chego à Clínica, e é o fim da Visita.