domingo, 3 de dezembro de 2017

A dor de dona Maria

Entra Maria. E porque são 18 horas, e o dia teve poucos cafés, e a saúde está em greve, o médico se pega pensando "Mais uma Maria." Esta é magra, das peles do braço balançarem pendentes, e apesar do rosto enrugado faz questão de pintar as sobrancelhas e passar um batom vivo. Usa um lenço na cabeça, mas fogem por baixo dele alguns fios de cabelos quebradiços.
"Ah doutor, eu vim porque minhas costas doem muito. Elas já doem há tantos anos""E como é essa dor?" pergunta o médico, e enquanto coleta a história de dona Maria, se pega num turbilhão de pensamentos exaustos - Dor lombar sem sinal de alarme, provável origem muscular com componente psicossomático, fazer agulhamento, passar antiinflamatório, alongamentos e compressa quente para casa; por que será que deixaram entrar uma dor nas costas crônica se na greve só devemos atender quadros graves e agudos?Seguindo a consulta, a paciente se deita para ser agulhada. Mas não se cala."Sabe, eu to morando na casa da minha filha e não consigo nem ajudar na faxina por causa dessa dor. E ela ainda reclama porque eu quero arrumar minhas coisas diferente...""Não pode falar enquanto as agulhas fazem efeito dona Maria."A paciente acata o pedido, mas por um tempo bem curto. Logo volta"É que eu queria ter a minha casa e fazer as minhas coisas na rua mas essa dor não deixa. E desde que eu separei não tenho casa. Foram 40 anos doutor. E eu amava ele, mas ele me traiu com a moça que fazia faxina lá em casa"Dona Maria fala enquanto mexe o corpo e os braços na maca, agulhas na lombar. O médico respira fundo. São 18:25; poucos cafés, saúde de greve, e dona Maria precisando falar. O médico sente raiva - mas se controla - e segue para reenquadrar a consulta. "Vamos tirar essas agulhas e a senhora me conta um pouco dessa história?"Maria desce da maca, não fala nada da dor, senta de novo na cadeira."É que doutor, foram quarenta anos casados. Criamos filhas. Ficamos juntos esse tempo todo e de repente dentro de casa ele faz isso comigo? Não podia perdoar ele. Mas sabe que ainda gosto dele doutor? Ele tava mal das vistas, e ia operar semana passada. Acabei rezando pra ele. Só não gosto de cruzar com ele na rua. Ele e ela né. As vezes faço voltas grandes pra não passar na rua que acho que ele tá. Me dá uma mágoa grande.""Mágoa também dói né dona Maria?""Acho que é o que mais dói doutor. Eu gosto dele, foram 40 anos. É muita coisa né? O senhor já gostou de alguém e ficou magoado doutor?"Silêncio. O médico volta alguns anos para uma dor do passado, um amor que não deu certo. São 18:40, é greve, é dor de cabeça por falta de café. Mas a raiva some, e surge uma enorme empatia. A dor da lembrança de um relacionamento que acabou o conecta imediatamente com a paciente. Ele repara pela primeira vez que ela tem olhos castanhos brilhantes, e um sorriso de gente triste. Extende sua mão para a de Maria, e enquanto elas se apertam, ele diz que sim, que entende."Você é tão jovem pra sofrer disso doutor. A minha mágoa é grande, mas eu já estou nos sessenta. Mas acho que todo mundo sofre né?"Silêncio. Troca de olhares. Maria decide por si mesmo levantar para ir embora. Comenta que já tomou muito tempo, e agradece a atenção. Se levanta e sai, com sua magreza enrugada, sorriso triste e dor de mágoa. O médico fica pra trás, tocado, reflexivo. Não importa mais a hora, a greve, o resto. Apenas Maria, tão humana (como o médico, como todo mundo). Maria com suas dores, buscando ser ouvida. Buscando conexão.